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Portugal x Espanha: Batalha de Tordesilhas

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Portugal e Espanha desbravaram, no século 15, terras que ficariam conhecidas como América. Em 1494, as duas grandes potências dividiram o mundo em dois com o Tratado de Tordesilhas, que demarcou as zonas de influência de ambos os reinos. Mas nesta Copa da Rússia, os dois países ibéricos dividem, mesmo, é o grupo E do Mundial. E a antiga rivalidade entre as duas nações será revivida hoje, em Sochi, às 15h no Brasil. As conexões entre os dois países, no entanto, são seculares e vão além da bola em campo. A História define, através de rotas tortuosas, a forte ligação cultural entre espanhóis e portugueses, cujo único limite são os Pirineus. 

A literatura dos dois países, marcada por gigantes como Camões e Cervantes, trazem pistas dessa conexão. Em 1986, o Nobel de Literatura lusitano José Saramago ensaiou uma crítica ao projeto de integração europeia em “A Jangada de Pedra”. No livro, um misterioso fenômeno desprende a Península Ibérica do continente europeu. O bloco de terra, como uma embarcação rochosa, flutua à deriva no Oceano Atlântico em uma grande alegoria da identidade ibérica, que de tão própria e subvalorizada optou por dar as costas à Europa. 

Entre guerras e momentos de proximidade, portugueses e espanhóis se parecem muito mais entre si do que com o restante do continente, embora tenham vivido disputas coloniais e econômicas. A forte influência romana e moura produziu características singulares. “O povoamento da Península Ibérica se deu de forma bastante diferente, com a presença de povos germânicos bem específicos, como os visigodos, algo agravado pela presença de povos árabes como os mouros. A região acabou ganhando essa identidade mista única na Europa”, explica o professor de História Leandro Augusto. 

As grandes navegações inundaram o imaginário ibérico por séculos. Esse processo floresceu a rivalidade entre os dois países, segundo Augusto. “Portugal e Espanha foram pioneiros nas navegações, o que levou à disputa de territórios”. Outro episódio que levantou animosidades foi a crise sucessória de 1580 em Portugal, causada pela morte de D. Henrique I, que não tinha herdeiros diretos. O monarca espanhol Filipe II, neto de D. Manuel I, rei português morto em 1521, assumiu o trono de Portugal. 

O controle espanhol levou à Guerra da Restauração. Após 27 anos de conflito, os portugueses conquistaram novamente sua soberania. Os dois países voltariam a se enfrentar no século 19, na breve Guerra das Laranjas, que deixou cicatrizes sentidas até hoje, como a disputa pela região de Olivença, e viram seu poder enfraquecer entre os séculos 18 e 19 diante do crescente protagonismo inglês e das independências nas colônias.

No século 20, Portugal e Espanha, com as monarquias abolidas, mergulharam na onda fascista impulsionada pela Alemanha, e a Península Ibérica se isolou com as ditaduras de Salazar e Franco. Nesse período, a rivalidade se fortaleceu na medida em que o projeto nacionalista do salazarismo tentou se diferenciar do franquismo. “Portugal, até pelo tamanho, tinha muito receio de se mostrar como um apêndice da Espanha”, explica Augusto. A redemocratização ibérica viria em datas próximas – a Revolução dos Cravos derrubou o Estado Novo em 1974, e Franco morreria em 1975, levando à restauração da monarquia espanhola. 

No presente, embora prestes a se enfrentar dentro de campo, Espanha e Portugal estão unidos pelo ressentimento com o passado. As duas nações acreditam que a adesão ao projeto europeu se deu à revelia da identidade ibérica, ao mesmo passo em que não se sentem valorizados pelo restante do continente. Apesar da rivalidade histórica, a melancolia da literatura e do fado português, além do ideal quixotesco de grandeza dos espanhóis, encontram-se em uma grande jangada rochosa que pretende honrar as caravelas de seus antepassados. Quando a bola rolar no estádio olímpico de Sochi, a competição entre a seleção de Cristiano Ronaldo, campeã da Eurocopa, e o time espanhol, que levou o título mundial em 2010, pode até evocar as antigas animosidades entre os dois povos, mas o objetivo será apenas um: garantir a soberania ibérica sobre as seleções europeias. 

* Com supervisão de Denis Kuck