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Ataque americano contra Síria relembra clima da Guerra Fria, mas contexto hoje é outro

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O vento gélido que sopra da Rússia, a ‘Besta do Leste’, atemoriza os Europeus. Os sonhos expansionistas de Napoleão Bonaparte e de Adolf Hitler se tornaram pesadelo diante da tenacidade e do inverno russo. Na segunda metade do século passado, a Guerra Fria dominou a política global, colocando os americanos como os ‘heróis’ e os soviéticos os ‘vilões’ da humanidade, que sentiu o bafo de uma guerra total. Mas mesmo após a queda do Muro de Berlim, os Estados Unidos e seus aliados ocidentais duelaram com a Rússia várias vezes. Nos últimos dias, a disputa entre as duas potências mais uma vez veio à tona, tendo como pano de fundo o conflito na Síria. 

Sempre que isso ocorre, o belicoso passado entre Rússia e EUA é invocado. O próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, falou: “A Guerra Fria está de volta”. Mas é justa a comparação? Para os analistas, não. “É necessário cuidado com os ânimos causados por notícias e análises que parecem urgir por uma nova Guerra Fria, o que constitui uso inapropriado de um termo utilizado para descrever animosidades entre dois países inseridos em um contexto político, econômico e ideológico completamente distinto daquele do século 20”, opina Yesa Ormond, pesquisadora de Relações Internacionais da UERJ. 

No último dia 7 de abril, um ataque na cidade de Douma, em Ghuta Oriental, deixou dezenas de mortos e feridos. A oposição ao regime de Bashar al Assad e socorristas denunciaram o uso de armas químicas. O presidente americano, Donald Trump, ameaçou os russos, dizendo que mísseis seriam lançados contra a Síria  em áreas controladas pelo governo. Moscou entrou na guerra no país árabe em 2015, apoiando Assad. O Reino Unido disse que considerava ações militares, e a França afirmou ter provas de que armas químicas foram usadas, uma violação aos Direitos Humanos e à Convenção Sobre a Proibição às Armas Químicas. 

Por outro lado, Síria e Rússia negam o ataque. Os aliados sugerem que tudo foi uma encenação, que - por baixo do pano - teria o pretexto de justificar uma invasão internacional na Síria. Moscou levantou o tom e afirmou que qualquer míssil enviado seria interceptado e que um conflito com os americanos não estava descartado. 

Trump: antítese de Putin 

Para o professor de Relações Internacionais Fabiano Mielniczuk, da ESPM-Sul, é pouco provável que Assad tenha utilizado armas químicas nesse estágio do conflito. “A guerra está ganha. Com a ajuda dos russos, os sírios acabaram com o Estado Islâmico e ocuparam novamente o território do país. Um ataque químico não seria necessário. Além disso, em 2014, a ONU supervisionou a retirada das armas químicas do país, e deve-se considerar o histórico de alegações pouco confiáveis por parte da oposição a respeito dos ataques químicos do governo”, analisa. 

Ninguém realmente esperava por isso, mas na última sexta-feira Trump anunciou bombardeios contra a Síria. França e Reino Unido também participaram da missão. Os alvos foram supostos locais usados para a fabricação de armas químicas. Os russos condenaram a ação e falaram que haverá consequências, mas tudo indica que a prudência prevalecerá. Os ataques, embora significativos, foram limitados, Moscou provavelmente os aguardava e não há indicação de invasão internacional. 

A frieza de Putin, no entanto, contrasta com a imprevisibilidade de Trump. “Vejo no governo Trump a antítese do que pode ser considerado pragmático. Ele age de maneira imprevisível e inconsistente. É possível conciliar incoerência com pragmatismo? Caso a resposta seja sim, essa conciliação se deparará com idas e vindas. Há múltiplas possibilidades de ação, que podem variar entre o diálogo e a negociação e, em um caso mais extremo, em enfrentamentos bélicos”, diz Yesa.

Rússia fortalecida a partir dos anos 2000 

O presidente russo procura não entrar em briga à toa. Quando o faz, é para reforçar a imagem do país no cenário internacional. De certa maneira, situações como a de agora podem ajudá-lo. “Não é uma ação específica nem algo a curto prazo que colocará a Rússia novamente no rol das potências mundiais, mas um plano a longo prazo. Putin conhece as limitações russas ao jogar com outros atores, coloca-se de forma coerente, não parece um louco desvairado em busca de poder. Além disso, faz parte do pragmatismo de Putin se aproveitar dos equívocos de Trump, ele não faz ameaças desmedidas pelo Twitter, o que para a diplomacia mundial é uma piada. Essa forma de jogar confere a Putin margem para a Rússia manter sua postura de resistência à ingerência internacional em assuntos domésticos de outros países”, afirma Beatriz Pontes, pesquisadora de Relações Internacionais da UERJ.

Para ela, é errado falar em clima de Guerra Fria: “De 1945 a 1991 houve um conflito direto entre duas potências pela hegemonia mundial. Hoje, o cenário é de guerra por procuração. Rússia e EUA utilizam terceiros como forma de disputar áreas de influência”. 

Segundo Mielniczuk, há dois momentos distintos na relação entre russos e americanos após a Guerra Fria. Inicialmente, as ameaças de Moscou não eram levadas a sério. “Os anos 90 são marcados pela Rússia com um governo fraco, enfrentando conflitos internos e experimentando a pior recessão da história como resultado da transição para economia de mercado. Do outro lado, os EUA emergiam como os vencedores da Guerra Fria”, afirma. 

Após a chegada de Putin, a situação mudou. “A Rússia recuperou sua economia, concentrou poder na figura da presidência e passou a ter os meios necessários para ser assertiva em questões internacionais de seu interesse”, diz o professor, que não descarta um conflito de maiores proporções caso os EUA continuem com suas ações contra Moscou.

CONFLITOS

KOSOVO: Em face da repressão sérvia no Kosovo contra separatistas albaneses, a Otan iniciou em março de 1999 uma campanha de bombardeios de 78 dias, forçando a Sérvia, aliada de Moscou, a se retirar do Kosovo. A Rússia, que ameaçou a Otan com um “retorno à Guerra Fria” em caso de intervenção, congelou a cooperação militar com a Aliança Atlântica.

OTAN E UE: A Otan integra em 1999 três antigos membros do Pacto de Varsóvia (Hungria, República Tcheca e Polônia). Moscou adverte contra a admissão de ex-repúblicas soviéticas. Em 2004, porém, a Otan convida os países bálticos (Estônia, Lituânia, Letônia), bem como Bulgária, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. E, em 2004 e em 2007, a União Europeia integra todos esses países.

 GEÓRGIA: Em agosto de 2008, em resposta à intervenção da Geórgia contra a região separatista da Ossétia do Sul, a Rússia bombardeou a capital da Geórgia, Tbilisi, e ocupou parte do território, provocando protestos do Ocidente. Um acordo de paz resultou na retirada das tropas russas, mas Moscou reconhece as regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abcázia e mantém forte presença militar no país.

UCRÂNIA: Em 2014, a Ucrânia assistiu impotente à anexação por Moscou de sua península da Crimeia e, em seguida, à tomada de controle por manifestantes pró-russos de edifícios oficiais em Donetsk e Lugansk, no leste do país. A crise provoca a adoção pelos Estados Unidos e pela UE de sanções contra a Rússia.