O entendimento entre os protestantes e católicos da Irlanda do Norte, firmado no feriado da Sexta-Feira Santa há exatamente duas décadas, selou um marco histórico para a pacificação da região. O aniversário do acordo coincide com a indefinição das negociações do Brexit quanto à fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda, república integrante da União Europeia.
Mesmo com o fim do derramamento de sangue, a conciliação entre protestantes e católicos parece frágil 20 anos depois. As forças políticas dos dois grupos enfrentam divergências no Executivo da Irlanda do Norte e da capital Belfast, que está sem governo há 15 meses.
Outro fator político agravante é o voto britânico para a saída da União Europeia em 2016, o que implicaria no fim da livre circulação de pessoas na fronteira entre as Irlandas e, consequentemente, na formação de uma nova barreira física na região limítrofe. Há, no entanto, a expectativa de que a UE abrirá exceção para o caso da fronteira entre os dois territórios nas negociações do Brexit por conta das divergências histórias já superadas. Isso, entretanto, ainda não ocorreu, o que alimenta incertezas.
As divergências entre protestantes e católicos irlandeses são centenárias e se confundem com a história da Irlanda e do Reino Unido. No século 12, antes do domínio dos ingleses, a Irlanda era formada por seis reinos. Em 1166, uma guerra civil se instaurou na ilha e serviu como pretexto para que o rei Henrique II da Inglaterra ocupasse as terras vizinhas, o que se concretizou cinco anos depois.
Em 1556, após a reforma anglicana, que marcou o rompimento da Coroa britânica com o catolicismo, os ingleses criaram colônias de plantação na Irlanda e iniciaram um processo de ocupação no nordeste da ilha, predominantemente católica, com cidadãos protestantes. Mas o estopim para o discurso nacionalista veio quase 300 anos depois, no período conhecido pelos irlandeses como a Grande Fome, quando um fungo devastou plantações de batata, principal alimento consumido na região, entre 1845 e 1848. A população do país foi reduzida em dois milhões - metade migrou para os Estados Unidos e a outra morreu em decorrência da fome. A diáspora e a tragédia social contribuíram para a formação da consciência de um sentimento irlandês - e católico.
A separação definitiva veio com a Guerra da Independência, entre 1919 e 1921. O sul da ilha formou a República da Irlanda. Seis regiões administrativas permaneceram sob o controle de Londres, formando a Irlanda do Norte. A minoria católica remanescente no domínio britânico foi o gatilho para conflitos violentos. A paz que parecia impossível Acordo que pôs fim à violência na Irlanda do Norte completa 20 anos com desafio do Brexit.
Em 5 de outubro de 1968, uma manifestação pacífica do Movimento dos Direitos Cívicos, mobilização da população católica que denunciava a discriminação exercida pelos protestantes na Irlanda do Norte, foi duramente reprimida pela polícia em Londonderry, um reduto do catolicismo. Os protestos mobilizaram o exército britânico. Em 30 de janeiro de 1972, os militares massacraram um protesto católico pacífico na cidade, matando 14 pessoas. O episódio ficou conhecido como “Domingo Sangrento”.
A tensão entre protestantes e católicos se agravou com a atuação do Exército Provisório Republicano Irlandês (IRA), grupo paramilitar que defendia a reunificação da Irlanda. O grupo assassinou um primo da rainha Elizabeth II, o Lorde Louis Mountbatten, em 1979, e quase matou a primeira-ministra Margaret Thatcher no ataque à convenção do Partido Conservador em 1984. Paralelamente, o IRA contava com seu braço político no parlamento da Irlanda do Norte, o partido Sinn Féin.
Diversos acordos de cessar-fogo fracassaram ao longo dos anos, bem como tentativas de formação de governos de coalizão entre protestantes e católicos. Em 1997, a ascensão de Tony Blair ao cargo de premiê britânico, o primeiro trabalhista em quase 20 anos, abriu as portas para negociações. Em 10 de abril de 1998, as esperanças se materializaram e o Reino Unido e a Irlanda firmaram o histórico Acordo da Sexta-Feira Santa, pondo fim ao conflito de 30 anos. Em 2005, o IRA anunciou oficialmente o fim da sua luta armada.
*Estagiário sob supervisão de Denis Kuck