Bruno Pontes, Agência JB
RIO - Às vésperas das eleições presidenciais da Argentina, a primeira-dama Cristina Fernández de Kirchner deve vencer já no primeiro turno, marcado para domingo, com algo entre 41,7 e 49,4% dos votos, de acordo com pesquisas divulgadas pelos maiores jornais do país.
O jornalista e mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, Nelson Franco Jobim, conversou com o JB Online e fez um balanço sobre a reta final das eleições que prometem estreitar os laços entre Brasil e Argentina.
Jobim, que também é pesquisador associado do Centro de Estudos das Américas (CEAs) da Universidade Cândido Mendes e colaborador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, afirma que as diferenças entre o governo do marido Néstor com o futuro governo da esposa Cristina irá além das diferenças de personalidade, mas que por outro lado Lula terá maior facilidade de relacionamento com a senhora Kirchner.
JB Online: A que se deve o favoritismo de Cristina Kirchner - uma candidata que praticamente não dá entrevistas nem participa de debates - à presidência da Argentina? Néstor é um nome de peso que está influenciando na decisão final de voto por parte dos eleitores?
Nelson Jobim: Cristina Kirchner está sendo eleita por causa da recuperação econômica da economia argentina depois do colapso da dolarização iniciada por Carlos Menem (1989-99) , que acabou com o governo Fernando de la Rúa (1999-2001). Foi a pior crise de uma economia avançada na História. O dinheiro desapareceu. Cerca de 58% caíram abaixo da linha da pobreza. Desde que Kirchner chegou ao poder, há quatro anos e meio, a pobreza caiu de 54% para 23,4%, a miséria de 27,7% para 8,2% e o desemprego de 17,8% para 7,7%. A massa salarial cresceu 89,4% e o aumento do consumo nos supermercados já supera os 50%. A economia argentina se expandiu a um ritmo anual de mais de 8%. Este ano as exportações devem passar de US$50 bilhões.
Por outro lado, De la Rúa 10 anos depois que Raúl Alfonsín (1983-89) saiu seis meses por causa da hiper-inflação destruiu a União Cívica Radical. No governo, o partido tem um histórico catastrófico para o país. Assim, o Partido Justicialista (peronista), um saco de gatos onde cabe todo o mundo, apresenta-se como a única força política capaz de governar a Argentina. Nos anos 70, havia sob bandeira do peronista da a Aliança Anticomunista Argentina (AAA), um grupo paramilitar, um esquadrão da morte de extrema direita, aos Montoneros, um grupo guerrilheiro de esquerda. Quando De la Rúa caiu, depois de uma série de presidentes interinos, assumiu o candidato derrotado, o peronista Eduardo Duhalde, que fora vice de Menem no primeiro mandato. As últimas eleições foram disputadas por dois peronistas, Menem, representante da direita peronista, e Kirchner, da esquerda peronista. Então a recuperação da economia e a hegemonia política do peronismo garantem a vitória de Cristina. É uma eleição chata, que provoca apatia no eleitorado. É uma corrida em que todos sabem quem vai ganhar, Cristina Fernández de Kirchner, provavelmente no primeiro turno.
JB Online: O que muda na Argentina com o novo comando?
NJ: Esta é a grande questão. Será apenas uma diferença de personalidade? Néstor Kirchner é um turrão que se relaciona pelo confronto. Sai brigando com meio mundo. O simples fato de ser uma mulher já é uma mudança importante e significativa. A segunda colocada, Elisa Carrió, também é mulher. Do ponto de vista político, de um lado, o peronismo, por sua inconsistência ideológica, é caudilhista, populista e personalista. Cristina é a herdeira de María Eva Duarte de Perón, Evita, a bela segunda mulher do general Juan Domingo Perón, que morreu jovem em 1952 e chegou a ser cogitada para a vice-presidência, destino que María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, cumpriu tragicamente. A futura presidente já era senadora quando seu marido foi eleito senador. Como mulher inteligente e bem-sucedida profissional e politicamente, Cristina tem luz própria. Por outro lado, ela governa dentro da máquina peronista, rearticulada por seu marido como instrumento de poder. Ela é fruto do kirchnerismo. Esta é sua limitação. Então podemos esperar mais do mesmo. Há também uma mudança fundamental na situação do país que Kirchner herdou durante a crise e o que Cristina vai governar. Os cinco maiores problemas econômicos da Argentina são: inflação, descontrole dos gastos públicos, falta de confiança, falta de regras claras, excesso de subsídios e crise energética. Neste contexto, Cristina tende a ser mais conciliadora. Pode tentar um acordo com os credores que não aceitaram os termos da renegociação da dívida argentina depois da crise. Terá de resolver os problemas criados pelo congelamento das tarifas de serviços públicos, sustentado com fortes subsídios, e isto implica negociar com as empresas privatizadas. Néstor Kirchner sempre bateu de frente. Quanto à falta de confiança dos investidores e à falta de regras claras, o peronismo e o populismo não rimam com institucionalização. É essa incerteza permanente que dá margem de manobra aos caudilhos. Neste caso, não dá para ser otimista.
JB Online: O senhor acredita em uma melhora na relação Brasil-Argentina, após a quase certa vitória de Cristina Kirchner?
NJ: De um lado, a relação Lula-Néstor Kirchner teve altos e baixos, em parte por causa da falta de diplomacia do presidente argentino, que abandonou por exemplo a reunião de cúpula América Latina-Países Árabes no início. A relação com Cristina Kirchner será mais fácil e tranqüila. Por outro lado, o ingresso da Venezuela do Mercosul e a aliança oportunista Kirchner-Chávez, em que o presidente venezuelano compra bônus argentinos, criam um contrapeso ao poder do Brasil. A Venezuela é bem-vinda na medida em que Brasil, Argentina e Venezuela são o eixo da América do Sul; os outros países giram ao redor, talvez com a exceção do Chile, que, espremido pela cordilheira, volta-se para a Ásia. Mas Hugo Chávez não é uma liderança que some; ele divide. Nas negociações internacionais do bloco, por exemplo, com a União Européia, a presença de Chávez é uma complicação que Lula e Cristina terão de resolver. Ele também não contribui para a institucionalização do bloco. Então, a integração latino-americana ocorre na prática, na medida em que as empresas vêem oportunidades de negócios nos países vizinhos, mas a institucionalização do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações não avança. Agora, a Argentina é o parceiro natural do Brasil. São duas superpotências agrícolas num mundo onde a importação de alimentos cresce na medida em que centenas de milhões de chineses e indianos deixam o campo em busca de empregos melhores na indústrias. A aliança Brasil-Argentina reforça a posição dos dois no mundo globalizado, extremamente competitivo.