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ONU oficializa essa semana pacto inédito sobre imigração, mas sofre resistência e boicote

Guillermo Arias/AFP/27-10-2018 -
Caravana de imigrantes da América Central, de maioria hondurenha, atravessa ponte no México em direção à fronteira com os Estados Unidos no fim de outubro
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A Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas completa amanhã seu 70º aniversário diante de flagrantes violações e desafios a serem enfrentados pela governança global. É nesse cenário que a ONU reúne nos próximos dois dias em Marrakech, no Marrocos, representantes de mais de 100 países para referendar o primeiro pacto global sobre migração, cujo texto final foi aprovado em julho. A conferência intergovernamental, que será aberta na sequência da COP24 em Katowice, na Polônia, conta com a oposição de vários governos desde que os Estados Unidos de Donald Trump abandonaram as tratativas do acordo em dezembro do ano passado.

Ao todo, segundo as Nações Unidas, 250 milhões de pessoas se encontram na condição de imigrantes no mundo - o equivalente a 3,4% da população mundial, um aumento de a 0,7% em relação a 2000. O plano começou a ser idealizado na Assembleia Geral de 2016 e, na época, teve o suporte de todos os 193 países membros da ONU. O texto final, aprovado neste ano, defende o melhor gerenciamento dos fluxos migratórios, o fortalecimento dos direitos de imigrantes e o apelo ao desenvolvimento sustentável.

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Caravana de imigrantes da América Central, de maioria hondurenha, atravessa ponte no México em direção à fronteira com os Estados Unidos no fim de outubro (Foto: Guillermo Arias/AFP/27-10-2018)

Os argumentos não foram suficientes, no entanto, para governos que têm engrossado a retórica contra a imigração nos últimos anos. Além dos EUA, parte do novo eixo populista europeu também se recusou a aderir ao acordo, chamado oficialmente de Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular: é o caso da Hungria, Polônia, Itália, República Tcheca, Bulgária, Eslováquia e Áustria. A decisão dos austríacos teve peso simbólico adicional, já que Viena ocupa a presidência interina da União Europeia (UE) até o fim do ano.

A Holanda, por sua vez, enfrenta resistências internas, enquanto o Parlamento da Bélgica aprovou a adesão ao Pacto Global após uma turbulência política que ameaçou o governo do primeiro-ministro, Charles Michel. Fora da Europa, Austrália e Israel também não devem referendar o acordo.

Apesar do alarmismo de alguns países, o pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) Bruno Magalhães afirma que o texto final teve suas cláusulas meticulosamente preparadas para evitar que suas propostas sejam interpretadas como obrigatórias aos signatários. “O Pacto Global é um tipo de instrumento legal incomum. A ONU não costuma assinar pactos. Por algum tempo, não houve muita clareza sobre a implicação da assinatura. Com as várias versões discutidas na conferência de Nova York (2016) e Marrakech (2018), o fraseado do acordo foi diluído como uma mera lista de sugestões”, explica Magalhães.

No formato do acordo, o texto a ser referendado no Marrocos cria padrões de avaliação do progresso dos signatários em relação às metas estabelecidas, e estabelece um programa de revisão desse processo. A cada quatro anos, os países que votarem pelo pacto serão convidados à ONU para apresentar um relatório sobre esse período e como encaminharam leis nacionais para cumprir os compromissos firmados em Marrakech.

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Imigrante venezuelano caminha em rodovia na Colômbia em direção ao Peru, em agosto (Foto: Koen van Weel/ANP/AFP/23-8-2018)

Embora os países favoráveis sejam maioria, a oposição ao acordo, cuja iniciativa em escala global é inédita, não deixa de chamar atenção. O professor explica que, apesar do caráter “suave” do texto a ser aprovado no Marrocos, os países que apresentam resistência temem que o pacto sirva como porta de entrada para novos tratados e até mesmo para o reconhecimento da migração como um direito humano, além de refletir um esforço em diminuir a figura das Nações Unidas.

“É preciso considerar, também, que as posturas dos países que têm denunciado o acordo também têm a ver com o que chamamos de ‘política de janela’. Você faz política externa pelo efeito que ela vai ter internamente”, aponta Magalhães. “Na Bélgica, onde a discussão tem sido quente, há relação com a disputa pelo governo e a reorganização de sua coalizão. Na Eslováquia, o presidente vinha sendo acusado de corrupção e viu na denúncia uma forma de desviar a atenção. Análise semelhante pode ser feita com outros países”, acrescenta.

Para o pesquisador, desde a apreciação do pacto na Assembleia Geral da ONU de 2016, houve mudanças radicais no xadrez internacional, o que contribuiu para a desidratação do acordo. “O mundo no qual Marrakech se reunirá não respeita mais a geopolítica existente na conferência de Nova York”, pondera.

Apesar de elogiar o esforço da ONU em um projeto global, o professor também enxerga problemas entre as metas e sugestões. “Com a saída dos EUA do pacto, o protagonismo coube à União Europeia (UE). As propostas do texto final se alinham quase que automaticamente com as demandas e políticas migratórias de países europeus. Vemos isso traduzido em questões muito concretas, como a preocupação em fechar acordos com países de origem para que recebam de volta imigrantes que estão na UE, o que já vem sendo firmado com países africanos”, diz o acadêmico. “Vemos esse tipo de política se tornando um dos carros-chefes do acordo, o que suscita várias críticas. Há, claro, provisões em ampliar direitos como a educação, serviços públicos, até reafirmações um pouco mais tímidas sobre os direitos humanos do imigrante não documentado, mas mesmo essas iniciativas são, muitas vezes, casadas com discursos de segurança”, completa.

Outra dificuldade em trazer impactos concretos nas crises migratórias é o fato de que, com o texto atenuado para dirimir as resistências, muitos países signatários assumirão compromissos abaixo daqueles já firmados em acordos anteriores. Já no caso do Brasil, aponta Magalhães, ultrapassar essa linha tímida para os padrões mundiais será um enorme desafio. “Não temos política funcional de acolhida aos imigrantes. Se o país se comprometer com as metas do pacto e respeitá-las, isso seria um enorme progresso para o Brasil. desde que não repitamos o erro da securitização”, opina ele.

Esse panorama é incerto, na avaliação do acadêmico, com a posse do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), em menos de um mês. “Quando Bolsonaro ainda era candidato, ele chegou a fazer comentários no sentido de que a ONU não serviria para nada, que era um absurdo o país depender de recursos para lidar com migrantes, incluindo, e essa é particularmente preocupante, a sugestão de que o Brasil deveria criar com campos de refugiados para lidar com a imigração venezuelana. É uma política abertamente desencorajada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, mas ele também defendeu os direitos dos venezuelanos. É preciso saber qual Bolsonaro vai imperar nas questões migratórias: o dos arroubos da campanha ou o que tem indicado nomes moderados?”, questiona Magalhães. A indicação do chanceler Ernesto Araújo, para o professor, é um sinal que vai na linha oposta a essa conciliação.

Koen van Weel/ANP/AFP/23-8-2018 - Imigrante venezuelano caminha em rodovia na Colômbia em direção ao Peru, em agosto