ASSINE
search button

Recordações de quem vivenciou a Primeira Guerra Mundial

Compartilhar

Conheça a história por trás de alguns objetos simbólicos ou de apreço de descendentes ou testemunhas da Primeira Guerra Mundial, com os quais a AFP se reuniu por ocasião do centenário do conflito.

NANTES, França - Durante um ano, Maurice e Yvonne Retour escreviam todos os dias, contando um ao outro as tarefas diárias, os horrores da guerra e expressando palavras de amor e intensidade incomum. Quase um século depois, seus netos descobriram, empolgados, suas cartas cheias de ternura.

"Meu amado Maurice, voltarei a te ver?", indagou em uma de suas cartas Yvonne Retour, que viria a perder Maurice de forma brutal em 27 de setembro de 1915, quando estava grávida de sua filha.

"Nunca saberei dizer-te como estou orgulhoso de ti e como me fazes feliz, é realmente a mulher com quem eu sonhava", escreveu Maurice, que alternava os sentimentos amorosos com as descrições sombrias da guerra, e "que só podia chorar à noite".

"Te beijo com a ternura da mais apaixonada das mulheres", assegurou Yvonne, que tinha 23 anos quando a guerra começou. Depois da morte de Maurice, ela nunca mais voltou a se casar.

Criou sozinha seu filho Michel e sua filha Emmanuelle, concebida quando Maurice fora repatriado durante o verão de 1915 para tratar de um ferimento na mão. Morreu pouco depois.

Patrice Retour, um dos 12 netos do casal, explica que jamais imaginou que sua avó - falecida em 1971 - tivesse escrito cartas tão apaixonadas.

Foi só no final dos anos 1990 que ele encontrou a correspondência dentro de uma caixa.

Retour, agora avó, sempre relê impressionado essas cartas que revelam "a guerra melhor que uma reportagem ou uma aula de História".

VIENA, Áustria - Ulrich Habsburgo-Lorena, descendente dos soberanos de Áustria-Hungria, conserva com zelo as reproduções dos quadros pintados por seu avô, um oficial do Exército imperial.

Seu avô paterno, o arquiduque Enrique Fernando, foi enviado em 1914 ao front russo e, mais tarde, à Itália. Pintor confirmado, deixou várias telas nas quais reproduzia cenas da época de perto de Lutsk, na atual Ucrânia.

"Pintou lavadeiras, um barco militar em um rio, um cemitério judeu, mas nenhuma cena de batalha", testemunha Habsburg-Lorraine, de 77 anos, que conheceu o homem, falecido na década de 1960.

É provável que esse artista aristocrata, apaixonado por fotografia, tenha pintado seus quadros a partir das várias fotos que tirou no front e na retaguarda.

Depois da guerra, a República Austríaca proclamou que em 1918 expulsou do trono os Habsburgos e confiscou a maior parte de suas propriedades. Enrique Fernando perdeu oficialmente o título de arquiduque e foi para a sua residência em Salzburgo.

Seu neto, Ulrich, nascido em 1941, descobriu rapidamente a importância de seu sobrenome: "Na escola primária diziam que a minha família era responsável pela Primeira Guerra", lembra. E ele, que não gostava particularmente de História, era repreendido pelos professores: "Por conta disso, você tem que saber tudo".

KOSON, Ucrânia - Istvan Petnehazy nunca saiu da cidade de Koson, onde nasceu, mas sua casa mudou cinco vezes de país desde a Primeira Guerra Mundial, uma ilustração das transformações territoriais e políticas geradas pelo conflito.

Este afável idoso de 86 anos se expressa em húngaro, a língua falada por seus familiares por gerações. Mas sua cidade de Koson está atualmente localizada na Ucrânia, na fronteira com a Hungria.

Quando seu pai nasceu, a comuna era parte do vasto império austro-húngaro, que se expandia da Europa central até os Bálcãs. Mas quando Istvan nasceu, em 1932, o povoado havia se tornado parte da Checoslováquia, um novo Estado nascido da divisão do império dos Habsburgo após 1918.

Os húngaros ocuparam brevemente a região de Koson, de maioria linguística húngara, entre 1938 e 1944. A União Soviética recuperou a área após 1945 e posteriormente à queda da União Soviética, em 1991, ficou como parte da Ucrânia.

Em meio a esse turbilhão histórico, Istvan Petnehazy conserva fotos amareladas nas quais veem os irmãos de sua avó, ainda adolescentes, enviados ao front com o uniforme austro-húngaro.

"A vida continuou mais mal do que bem", conforme as bandeiras mudavam, explica Petnehazy, que se dedica à colheita de uvas. "As pessoas continuavam indo e vindo nos vinhedos que atravessam a fronteira".

MOUNT VERNON, Estados Unidos - É um simples estojo de couro marrom que leva a inscrição "Sgt Alvin C. York" em letras douradas. Pertenceu a um herói americano da Primeira Guerra Mundial que, ao retornar do front, fundou uma escola rural para crianças pobres.

Em 1917, Alvin York, um camponês analfabeto de 30 anos do Tennessee, foi convocado para lutar na França. "Ele sempre viveu em uma área rural, não sabia nada do mundo exterior. Quando veio a guerra, não sabia o motivo pelo qual lutavam", disse à AFP seu neto Gerald York, um coronel reformado do Exército, em sua casa em Mount Vernon, perto de Washington.

Em outubro de 1918, já havia se tornado o herói da batalha de Meuse-Argonne, perto de Verdun, a última ofensiva aliada que derrotou o Exército alemão. Com seu grupo, sob fogo inimigo, este atirador de elite matou 25 soldados alemães e fez mais de 100 homens de prisioneiros.

Tornou-se sargento e recebeu numerosas condecorações militares, incluindo a Medalha de Honra, a mais alta distinção americana, a Croix de Guerre e a Legião de Honra francesas. No total, acumulou cerca de 50.

Após o armistício, ficou na França alguns meses antes de ser recebido como herói em Nova York.

"Pelo que viu na França e Nova York, e porque havia sentido que a sua falta de educação era um verdadeiro obstáculo, decidiu criar uma escola e infraestruturas de qualidade em sua comunidade. Queria que todas as crianças do Tennessee tivessem uma oportunidade", conta Gerald York.

O sargento York iniciou seu projeto escolar, que começou em 1926 com uma escola de ensino fundamental em Jamestown.

Durante 10 anos e apesar da Grande Depressão, pagou os professores, os ônibus escolares e as obras para pavimentar as estradas ao redor da instituição.

O Instituto Alvin C. York, agora uma escola pública, ainda está de pé.

HANÓI, Vietnã - Uma foto em preto e branco do tamanho de um selo que ficou amarelada com o tempo. É o que resta de Dang Van Con, um jovem vietnamita enviado à França no início da Primeira Guerra Mundial para lutar contra os alemães, juntamente com milhares de recrutas da Indochina.

A sua família destruiu os livros, as cartas, os uniformes e as fotos do soldado, exceto pela foto tirada durante o casamento de um primo em 1953.

No Vietnã pós-colonial posterior a 1954, liderado por Ho Chi Minh, qualquer vínculo com os colonos franceses que acabavam de ser derrotados era motivo de pena de morte.

"Tivemos que queimar todas as evidências de nosso relacionamento com os franceses", recorda um dos netos de Dang Van Con, Cao Van Dzan, que hoje tem 75 anos.

Cerca de 10 mil vietnamitas foram recrutados para lutar com os soldados franceses durante a Grande Guerra. Quase metade deles lutou no front, outros trabalhavam em fábricas ou construindo estradas e trilhos de trem.

A maioria deles era pobre e sem educação. Mas Dang Van Con, oriundo de uma família de classe média, foi uma exceção. De fato, após seu retorno da guerra, a dinastia dos Nguyen, que reinou no Vietnã entre 1802 e 1945, lhe concedeu um título honorário, que contribuiu para melhorar o status de sua família. Mas, depois de 1954, essa distinção lhe valeu o desprezo de seus vizinhos.

Dzan lamenta a destruição de memórias familiares, mas está contente que o caminho marcado por seu avô permitiu que seus descendentes estudassem e trabalhassem no exterior. "Sua viagem à França fez com que seus filhos e netos tivessem um modo de vida civilizado", assegura.