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Entrevista - Rafael Correa: Traição, só entre amigos

Ex-presidente do Equador comenta legado e ataca sucessor, ex-aliado, por guinada à direita

Reprodução -
Ex-presidente do Equador Rafael Correa
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Rafael Correa, 55, sente saudades de casa, em especial do ceviche e do cheiro da chuva, memórias que guarda do Equador. Economista de formação e fundador do Alianza PAÍS, foi o presidente do país sul-americano por três mandatos, nos quais executou o projeto batizado de “revolução cidadã”, até se mudar para Bruxelas, na Bélgica, depois de deixar o poder no ano passado. A família, ele garante, foi o motivo da mudança - sua esposa é belga.

No entanto, um mandado de prisão preventiva expedido contra Correa em julho transformou sua residência em asilo político. O equatoriano se diz vítima de uma perseguição e da judicialização da política em seu país, e acusa seu sucessor e ex-aliado, Lenín Moreno, de trair o programa de governo defendido nas urnas.

Em entrevista ao JORNAL DO BRASIL por Skype, Rafael Correa discutiu os obstáculos na integração sul-americana, a crise na esquerda latino-americana e previu que Lenín Moreno revogará o asilo do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, refugiado na embaixada do Equador no Reino Unido desde 2012.

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Ex-presidente do Equador Rafael Correa (Foto: Reprodução)

Foi um erro estratégico apoiar o Lenín Moreno como seu sucessor?

Veja, tínhamos que indicar um candidato capaz de ganhar. Sabíamos que Lenín não seria um presidente extraordinário, mas havia uma institucionalidade, um sistema que estava funcionando. Jorge Glas (vice-presidente de Correa e Moreno), hoje preso, daria um extraordinário presidente porque é capaz e trabalhador. Mas não venceria as eleições. Então escolhemos alguém que poderia vencer e manter os êxitos do nosso governo. Escolhemos este perfil mais passivo e conciliador para evitar o desgaste. O que não sabíamos era que se tratava de um traidor. Mais do que isso, um inapto. Só um inapto poderia recorrer a uma traição para manter alguma base política. Porque isso que ele está fazendo só pode lhe servir no curto prazo. Agora, nós, os traídos, o detestamos. E aqueles que o utilizam o menosprezam. Ninguém quer um traidor.

Moreno foi seu vice por dois mandatos. Por que houve essa guinada?

A traição só pode ocorrer entre amigos. No passado, Moreno dizia que meu governo foi o melhor do mundo, que fui o melhor presidente de todos, mas agora sou ladrão, autoritário, assassino, sequestrador, repressor, corrupto. É uma hipocrisia completa, mas ele chegou ao poder e não precisou me apunhalar, como Temer fez com Dilma.

Por que você se mudou para Bruxelas?

Minha esposa é da Bélgica, onde nós nos conhecemos. Desde 2014 ou 2015 eu afirmava ao povo equatoriano que não me apresentaria à reeleição, apenas se fosse extremamente necessário. Em 2015, me convenci de vir para a Bélgica. Por minha causa, minha família viveu 25 anos no Equador. Eles também tinham o direito de viver aqui, pois se sacrificaram quando servi como presidente. A decisão de entrar na política afetou toda a família.

Como avalia a situação no Equador?

Não há democracia no Equador. Há um golpe de Estado. A América Latina vive uma guinada. Veja o que aconteceu na Venezuela. No Brasil houve um golpe de Estado. No nosso caso, não roubaram a nossa democracia, mas o nosso governo. Nós ganhamos com um projeto de continuar a revolução cidadã, e este impostor que ganhou e chegou ao poder decidiu pactuar com a direita e com os grupos de poder e adotar o projeto político derrotado nas urnas - o programa da direita, de aplicação do neoliberalismo, da consulta popular inconstitucional. Passaram os últimos 15 meses apenas criticando o legado do governo anterior, sem apresentar feitos.

Você foi implicado em muitos processos, incluindo um de sequestro...

Acabam de declarar vacância na Corte Constitucional do país (os nove juízes serão substituídos em dois meses) e estão fazendo uso do lawfare e da judicialização da política contra mim. Indiciaram um vice-presidente (Jorge Glas), que está preso sem nenhuma prova. A Odebrecht nem sequer foi acusada. Esse foi o trato com a empreiteira: acusem Glas, nós tiramos ele da vice-presidência e não faremos nada com vocês.

E os casos de corrupção?

É impossível, em 10 anos de governo, não ter um só caso de corrupção. Governo corrupto é aquele que não combate os desvios. Nós expulsamos a Odebrecht do Equador.

Seus governos sempre mencionaram metas a longo prazo. Qual o impacto da ruptura de Moreno?

Durante dez anos o Equador foi um país com um projeto nacional, sabendo onde queria ir e o que tinha de fazer. Agora não temos mais nada. Em dez anos, avançamos 20. Criticam a direita porque deixaram de fazer algo, enquanto a esquerda é sempre criticada porque não fazer tudo. É impossível fazer tudo em dez anos. É preciso entender o processo de desenvolvimento. Ainda mais no contexto latino-americano. Nossa burguesia aprendeu com a Revolução Cubana. Foi para Miami acreditando que voltaria em três meses. Não voltaram nunca mais. Aprenderam que tem de ficar dentro de seus países e controlar a imprensa. Por isso aqui é muito mais difícil avançar. A cada passo que se dá, há um desgaste enorme. Mesmo assim, no Equador, se avançou muito, e não só no tocante a distribuição de renda. Duplicamos o tamanho da economia, passamos de uma país de renda baixa a um país de renda média segundo o Banco Mundial e transformamos nossa matriz energética. A parcela de energia elétrica renovável saltou de 40% para cerca de 90%. Por isso digo que o atual governo é incompetente. Se querem criticar, espera-se que façam algo melhor. Mas não construíram nada nesses 15 meses.

Desde o fim do mandato de Ernesto Samper na Unasul, a entidade entrou em crise. Há solução para a paralisia?

O projeto de integração da Unasul não é de esquerda ou de direita. Foi idealizado por ambas, que decidiram unir-se. São doze países com diferentes sistemas políticos, religiões, idiomas e culturas, e todos fizeram parte do processo. É uma miopia política fazer essa distinção. Digo, com dor, que creio ser difícil salvá-la. A Unasul não tinha capacidade de impor sua agenda aos países que a integrava reúne diplomatas. E se isso não deu certo, foi por conta de um grave erro na concepção da entidade. Suas resoluções funcionam com base no consenso, e não com maioria simples ou qualificada, o que seria fundamental. Por conta dessa escolha, estamos há quase dois anos sem um secretário-geral.

Como avalia a política externa de Moreno e a visita do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, ao Equador?

Desde a segunda semana de governo sabíamos que tínhamos sido traídos, mas a maneira como disfarçavam com uma política internacional supostamente progressista, apoiando Venezuela e Cuba, mas essa máscara caiu rapidamente. Sobre Pence, é claro que ele está visitando países cujos governos são subservientes. O governo dos EUA foi logo visitar o Macri, mas nunca visitou a Cristina Kirchner. Não são visitas gratuitas. Com Pence, se discutiu sobre a entrega de Assange e sobre a Chevron e a Unasul. A última defesa sobre não ser um governo de direita, neoliberal, era a manutenção de uma política externa digna e soberana.

Existe a possibilidade de Julian Assange ser intimado a deixar a Embaixada do Equador?

A decisão do governo traidor de colaborar com os gringos e revogar o asilo de Julian Assange já foi tomada. Estão apenas esperando o momento oportuno. Disso eu não tenho a menor dúvida.

Como vê a situação do Brasil?

Obviamente, há uma tentativa de impedir Lula de participar das eleições e se tornar presidente. Isso é hipocrisia. Imagine se Lula fosse um opositor de Nicolás Maduro? Invadiriam a Venezuela.

E nos outros países da América Latina?

É preciso ter cuidado e contextualizar essas denúncias. Cristina está sendo acusada de traição à pátria, Lula de ter um triplex em São Paulo. Há prova? Não, mas é culpado. A mim, sequestro de um oposicionista. Um ex-presidente da república acusado de sequestro. Essa judicialização da política tem o objetivo de impedir que vençamos nas urnas. Se Lula for candidato, ele vencerá. Se de alguma maneira eu for candidato, caso a democracia for restabelecida no Equador, também. Temos um capital político muito grande. Na Argentina, Macri ganhou com uma diferença de menos de 5%. Ainda há governos de esquerda na América Latina, como Uruguai, Bolívia, Venezuela, Nicarágua, El Salvador e, sempre, Cuba.