O risco de o país estar caminhando para uma campanha eleitoral que se sujeite ao ambiente de tensões - e há no horizonte sinais de que isso é possível -, conduz, além da violência, a um clima propício à demagogia. Não se poderia pretender nada pior. Estaríamos sob o império da mentira e de confrontos desnecessários. Ideal que conseguíssemos, desde agora, descobrir caminhos que possam evitar tais dissabores. Precautelar-se faz bem nessas horas.
A propósito, valeria lembrar que, das preciosidades literárias que se perderam no tempo, figuram originais de um ensaio sobre a gênese da demagogia, esse cacoete que sempre teve parte na vida dos políticos, poderosa máquina de manipulação aplicada sobre os eleitores; não para instruí-los ou orientá-los, mas apenas para ganhar os votos, com preferência pescados entre os incautos. Tratava-se de um longo estudo a que havia se dedicado o professor Freitas Filho, expressão jurídica das tribunas cariocas. Sua morte súbita interrompeu essa e outras contribuições que o filósofo deixaria como herança ao saber do Brasil.
Tomando-se por base algumas de suas anotações sobreviventes, deliciosas na verve e na linguagem, é possível saber alguma coisa sobre os demagogos, que, no entendimento do professor, elaboram na mais grave afronta, sujeitando-se à arte de seduzir, e, para tanto, lançam mão de artifícios e promessas incabíveis, o que transforma a verdade dos fatos em adversária insuportável. Quando se chega a esse ponto, e mesmo que se guarde alguma reserva às conclusões do autor, há que se creditar a ele alguma razão: a demagogia sempre foi hospedeira de político mau-caráter; de todos os políticos maus-caracteres. Esse tipo de gente que, certo dia, levaria o presidente Jânio a queixar-se do Congresso: ”um clube de ociosos, em permanente demagogia”, defeito do qual nem ele próprio haveria de desvencilhar-se.
Isso faz parte da História. E velho como a sé de Braga, como diriam os pais de Freitas, portugueses do Minho. Vício realmente antigo, já famoso neste Rio, quando governado, em 1725, por Luiz Carlos Vahia, que produziu obra de invulgar falsidade na carta enviada ao rei, para dizer que “nesta terra do Rio de Janeiro todos roubam, menos eu”. O tempo se encarregaria de mostrar que a verdade era o contrário, afora a vocação do governador em mergulhar fundo na demagogia, quando, à procura de apoio político, disse inspirar-se no espírito que recebia de todos os ilustres colonos mortos.
Tempo de campanha eleitoral é, portanto, tempo fértil para as falsidades, colhidas na safra ideal de votos; e tão abundantes esses votos, quantos são os eleitores, vítimas não menores, se subjugados em seitas que se improvisam para acolher candidatos preferenciais e generosos nos dízimos. Ou, ainda, tropeçando na verdade, as tentativas de agradar a multidões, suspeita encontradiça até nos excessos elaborados pelos constituintes de 88: desejosos de multiplicar simpatias, como anotou o senador Leite Chaves, incorreram em legislar vantagens e direitos que nem os mais avançados países socialistas ousaram conceder.
Sob alguns aspectos, sem embargo de avanços dignos de aplauso, a Carta nem se fez de rogada ao abrigar propostas com evidente enganação. A propósito, há que se recorrer à acuidade de alguns estudiosos da matéria, que consideram o mais grave dos embustes demagógicos o nivelamento do salário mínimo, por baixo, para todo o território nacional, sob o pretexto de não prejudicar investimentos no Nordeste... Os trabalhadores urbanos pagam na pele e no bolso aquela generosidade, e nem por isso os nordestinos venceram suas misérias.
A palavra final devia caber aos demagogos da undécima hora. Falta prestar à vereadora Marielle Franco a mais justa e sincera homenagem: não explorar seu cadáver para fins políticos. É preciso sepultá-la, deixar que descanse em paz, dispensado o falso réquiem das encenações eleitoreiras.