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América Latina de famintos e obesos

Bloco tem 39 milhões de subalimentados e 104 milhões de obesos; mais da metade dos brasileiros está acima do peso

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Longe de diminuir, a fome e a obesidade aumentam na América Latina, em particular em Venezuela, Argentina e Bolívia. Em 2017 havia na região 39,3 milhões de pessoas subalimentadas e mais de 100 milhões de obesos, exército ao qual se incorporaram 3,6 milhões de pessoas em um único ano. Os alertas são do Panorama de Segurança Alimentar e Nutricional da região, levantamento anual das Nações Unidas.

“Pelo terceiro ano consecutivo temos que dar más notícias: aumentaram as cifras da fome na América Latina e Caribe”, disse o diretor regional da FAO, Julio Berdegué, na apresentação do estudo, elaborado por quatro agências da ONU (FAO, Opas, Unicef e PMA).

Entre 2015-2017, um número ainda maior do que o de famintos, cerca de 7,9% ou 47,1 milhões de pessoas, sofreram de insegurança alimentar. São quase cinco milhões a mais que no triênio anterior. O aumento de 11,6% no contingente se deveu, sobretudo, ao crescimento do risco alimentar em países América do Sul, onde os afetados saltaram de 24,3 milhões para 28 milhões. Na Mesoamérica (México e América Central), os ameaçados se mantiveram estáveis, na casa dos 18 milhões de pessoas. “Não há razões técnicas, nem materiais” para isso, comentou Berdegué.

Entre os vulneráveis, as crianças são as mais afetadas: 20% dos menores mais pobres sofrem três vezes mais com a desnutrição crônica que a mesma parcela mais rica. “Estamos condenado-as a um futuro tremendamente difícil”, afirmou o diretor. E, quando se trata de minorias étnicas, é ainda pior. Na Bolívia, por exemplo, 25% das crianças quéchua e 23% das aimará ainda sofrem de subalimentação crônica.

Uma das principais causas da escalada da desnutrição em grupos populacionais vulneráveis são as mudanças que os sistemas alimentares da região, que vão da produção ao consumo. Transformações culturais ou de acesso à determinados alimentos, alongamento da cadeia de consumo, variações no potencial nutritivo dos alimentos, tudo afeta os parâmetros.

A Venezuela lidera o crescimento no número de pessoas subalimentadas: são 3,7 milhões nesta situação, nada menos que 11,7% da população. Entraram nesse grupo 600 mil pessoas de 2015 a 2017 e a tendência é que os números tenham piorado recentemente. No quesito fome, a Venezuela é seguida por Argentina e Bolívia, onde os aumentos foram de 0,1%. Em todo o grupo, só Haiti, México, Colômbia e República Dominicana reduziram a fome desde 2014. Outros onze países seguem estáveis. Entre eles estão Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Peru. Ainda assim, no conjunto, só Brasil, Cuba e Uruguai têm porcentagens de fome inferiores a 2,5% de sua população.

O drama da obesidade

No verso da moeda, a epidemia de obesidade segue incontrolável: há 104,7 milhões de adultos nessa situação, quase um quarto de toda a população desta parte do mundo.

Os mais pobres são as principais vítimas tanto da desnutrição como da obesidade, em particular mulheres, indígenas, afrodescendentes e populações rurais. Se por um lado certos contingentes aumentaram o consumo de alimentos saudáveis, como leite e carne, outros precisaram optar por produtos baratos com alto teor de gordura, açúcar e sal, que conduzem facilmente ao sobrepeso.

A alimentação marcada por estes itens costuma ser mais barata. Em uma região que funciona como despensa agrícola para o mundo, muita gente não tem acesso a frutas e verduras frescas, alimentos normalmente exportados para os países centrais e vendidos a altos preços em centros urbanos dos países de origem.

Segundo o Ministério da Saúde, a obesidade atinge 18,9% dos brasileiros e o sobrepeso, 54%. A estatística da FAO é ainda pior: 56,5%. Apesar de gritante, o número não é dos mais altos da América Latina: um dos líderes em obesidade, o México tem 64,9% de sua população nessa situação. No Brasil, o mais grave é o fato de a obesidade ter aumentado 110% entre os jovens entre 2007 e 2017, quase o dobro da alta nas demais faixas etárias (60%). Segundo especialistas, a mudança na realidade das mesas dos brasileiros explica muita coisa: o feijão com arroz não é mais protagonistas em muitos lares, invadidos por comidas industrializadas e o hábito do fast food.

Apesar disso, a última Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) apontou um aumento da prática de atividades físicas no tempo livre de 24,1% e uma queda de 52,8% no consumo de refrigerantes e bebidas açucaradas entre 2007 e 2017. Mas a mudança de hábito ocorreu sobretudo entre adultos com idades entre 25 e 34 anos e entre pessoas com mais de 65 anos, o que explicaria a escalada no pseo dos mais jovens.

Já no Chile, 27% da população não tem dinheiro para comprar uma cesta saudável, recordou o diretor da FAO. A consequência é que as mulheres chilenas lideram a lista da obesidade da América do Sul e os homens chilenos ocupam o segundo lugar, atrás dos argentinos, na classificação por gênero. O Chile tem renda per capita que beira os US$ 20 mil dólares, mas sofre com altos índices de desigualdade, o que se reflete no tipo de alimentação.

“Reverter esse problema exige a combinação de políticas públicas, compromisso das empresas do setor alimentar e educação da população, afirmam especialistas. Isso passa por políticas de estado. “Os governos têm uma responsabilidade principal: erradicar a fome ou controlar uma epidemia como a da obesidade não é algo que se pode deixar só para a sociedade civil ou para as empresas. A liderança tem que vir dos governos”, assegurou Berdegué.

O combate à desnutrição e obesidade passa pela regulação da presença de ingredientes nocivos à saúde em alimentos processados e pela realização de campanhas de educação nos centros de ensino com o objetivo de integrar a comida saudável nas dietas. As empresas “têm que assumir sua responsabilidade” pelos alimentos que colocam nas prateleiras dos supermercados, principais causadores da obesidade, lembra Berdegué.