ASSINE
search button

Livro renova olhar sobre obra de Sérgio Rodrigues

Compartilhar

“Para os imperialistas romanos, a construção em pedra e cal significava a eternidade, enquanto o material bárbaro, a madeira, representava o precário, o provisório; assim, nós latinos, até hoje temos esse descabido preconceito contra casas de madeira, justamente o oposto do que acontece com os povos bárbaros de origem saxônica, germânica e nórdica cujo respeito e admiração por tal material é tão profundo que o índice de utilização da madeira em suas construções é quase absoluto”. O texto assinado por Sergio Rodrigues (1927-2014) diz a que vem a primeira publicação do instituto que cuida de seu acervo, o recém-lançado livro “Fortuna crítica - Sergio Rodrigues” (341 págs.; R$ 100). 

O instituto funciona desde 2012 na casa de Botafogo, que servia de escritório para o arquiteto. Preserva a memória daquele que foi considerado o inventor do móvel brasileiro, autor da histórica poltrona Mole - que projetou o design brasileiro no mundo - e fundador da Oca, a loja-galeria fundada em 1955. Guarda perto de 38 mil documentos, nas contas do presidente, Fernando Mendes, entre plantas, textos, croquis, fotografias e registros, que formam um capítulo precioso do Brasil moderno. A coletânea “Fortuna crítica”, que também está disponível para download no site do instituto, reúne textos publicados nas revistas “Módulo”, especializada em arquitetura e artes plásticas, dirigida por Oscar Niemeyer, e “Senhor”. 

“Na ‘Módulo’, Sergio traça alguns caminhos que marcam o surgimento de uma reflexão conceitual inovadora, na junção de arquitetura e de design, o que traduz o que era mesmo o espírito da Oca. Na ‘Senhor’, seu desafio era atrair o interesse do público masculino para o assunto da decoração, ou melhor, para a arquitetura de interiores, como Sergio preferia se referir ao seu ofício, algo que ele via como bem mais abrangente do que se embrenhar nas escolhas de móveis e objetos para compor o arranjo doméstico”, contextualiza Fernando. “Há em seus textos uma crítica contundente dos modos de viver naqueles anos e, não raro, ataca com ironia e elegância os hábitos sociais vigentes”, acrescenta. 

Ganha primeiro plano em “Fortuna crítica” o pensamento de Rodrigues, e não exclusivamente a obra. Daí, a importância do texto acerca da “Exposição casa individual pré-fabricada”, que foi montada em 1960 nos jardins do Museu de Arte Moderna (MAM). 

Uma das gratas surpresas é o fac-símile do catálogo da exposição, assinado por Mário Pedrosa: “Nesta época de irreprimível individualismo, com profundo caráter anárquico e pessimista (muito afim ao comportamento desabusado da ‘beat generation’) que se nota no campo das artes plásticas, mui especialmente da pintura, exposição como esta, em boa hora promovida pelo MAM, é iniciativa que podemos saudar pelo seu otimismo”.

Prossegue Pedrosa: “Trata-se de experiências em módulos pré-fabricados para habitação individual, projetados pelos arquitetos da OCA. É, assim, no fundo, uma reação sadia, embora inconsciente, ao excesso associal ou anti-social dominante atualmente nos meios artísticos e arquiteturais, e que vem mui a tempo, em nome de uma reivindicação de ordem social e cultural de transcendente e permanente importância: a da casa para o homem moderno, isto é, o homem comum de nossos dias”. 

Membro do Conselho Curador do instituto, o filósofo e crítico de arte Afonso Luz explica a opção por agregar o fac-símile ao livro. “É dos mais importantes documentos (...), essencial para a história do Brasil no século XX, pois nos mostra como os impasses urbanos e sócio-econômicos surgidos ao tempo da construção de Brasília levaram o design a projetar soluções ‘construtivas/participativas’ de grande inteligência, algo que talvez se equipare ao que nas Artes Visuais era o Neoconcretismo. E essas soluções inventivas nos colocavam em sintonia com a época global do pós-guerra”, afirma. 

Era o que permitia novos modos de vida, de interatividade e percepção, assinala o curador. “Sobretudo marcando o fenômeno singular brasileiro de uma cultura surgida nos trópicos e além da civilização europeia, onde certa fenomenologia do ambiente e da paisagem humana eram convertidos em paradigmas para uma nova história dos modos de vida e para a construção de nós mesmos na superação do atraso produtivo  - do ‘artesanato escravocrata’, eu diria -, num plano mais elaborado e mais rico em termos de conforto e felicidade, de emancipação e liberdade”. Para cada crônica, existe um tratamento gráfico evidenciando as camadas de informação que cabem na análise dos fatos em questão.

“Fortuna crítica” traz ainda fotografias históricas e reproduções de croquis de mobiliário e arquitetura de interiores de Sergio Rodrigues, publicados nas respectivas revistas, indicando a localização dos arquivos originais dentro do Instituto Sergio Rodrigues e abertos para consulta pública. A expressão ‘Fortuna crítica’, aliás, foi escolhida por fazer jus ao livro: é um termo acadêmico para a compilação de textos críticos de terceiros ou do próprio autor sobre sua obra. A edição é bilingue (português/inglês). Diversos projetos vão sendo arquitetados para manter a obra de Sergio Rodrigues viva. Um acordo de cooperação técnica firmado entre o instituto e o Ministério das Relações Exteriores pesquisou os 40 modelos de mobiliário criados pelo designer para a Embaixada do Brasil em Roma. Reproduzidas, as peças serão exibidas em Milão do dia 17 a 21 deste mês. Em 9 de junho, no Itaú Cultural, em São Paulo, será aberta a retrospectiva “Ser estar Sergio Rodrigues”, que reúne na curadoria Mari Stockler, Daniela Th omas, Felipe Tassara e Fernando Mendes.