ASSINE
search button

'Mistérios para ler antes de morrer (ou ser morto)'

Raphael Montes analisa 'Tarântula', que virou filme de Almodóvar

Compartilhar

Tarântula (Ed. Record), escrito em 1984 pelo francês Thierry Jonquet, foi adaptado para o cinema em 2011 pelo diretor Pedro Almodóvar sob o título A pele que habito. Ainda que o livro se passe em Paris e o filme em Santiago de Compostela, sobrevive nas duas obras a essência do drama: vingança, ódio e horror; prova de que estes sentimentos são comuns e perigosamente humanos, seja na França, na Espanha ou no Brasil.

No livro, Jonquet apresenta três histórias paralelas que, com o correr das páginas, convergem numa teia macabra e surpreendente: Richard Lafargue, renomado cirurgião plástico, maltrata sua bela mulher (amante?) Éve ao prostitui-la a preços módicos e mantê-la trancada em seu quarto. A relação dos dois é confusa, misteriosa e, por isso, perturbadora. A história se interrompe para mostrar a fuga de Alex Barny, assaltante procurado pela polícia por ter matado um gendarme. Com seu rosto estampado nos jornais, Alex precisa urgentemente desaparecer. Em novo enfoque narrativo, acompanhamos o destino de um jovem acorrentado num porão escuro por um homem que chama de Tarântula.

“Mentalmente, você dera um nome a seu amo. Não se atrevia a usá-lo em sua presença, naturalmente. Chamava-o Tarântula, em alusão a seus terrores passados. (...) Tarântula porque ele era como a aranha, lenta e secreta, cruel e feroz, ávida e imponderável em seus desígnios, escondido em algum lugar naquele covil onde o mantinha sequestrado há meses, uma teia de luxo, uma armadilha dourada, de que você era carcereiro e detento.”

A utilização de uma linguagem seca e direta, porém rebuscada, aumenta a sensação de estranhamento. Nos momentos sobre o jovem torturado, Jonquet utiliza a incomum segunda pessoa, aproximando com eficiência o leitor da agonia da vítima. No entanto, o maior mérito de Jonquet está na mescla habilidosa de dois estilos “opostos” do gênero policial. A densidade dos personagens, bem como suas relações perturbadoras, aproxima “Tarântula” do suspense psicológico, caracterizado por longas imersões subjetivas. Por outro lado, a opção por uma narrativa em tramas paralelas – muito utilizada nos romances policiais modernos - dá ritmo de thriller ao livro, de modo que suas 158 páginas podem ser facilmente devoradas em uma chuvosa tarde de sábado.

A violência da história serve apenas como pitada noir ao sabor do prato, temperado com sensualidade e ação. Em verdade, o gosto pelo macabro pode ser notado em diversos autores da França atual: Jean-Cristophe Grangé escreveu O Concílio de pedra e Rios Vermelhos (Ed. Record), este último filmado em 2000 com Jean Reno no elenco. Franck Thilliez, ainda não traduzido, publicou o tenso La chambre des morts (A Câmara dos mortos), filmado em 2007 e exibido recentemente na Casa França-Brasil do Rio de Janeiro em uma mostra policial.

Num viés mais clássico, Jean-Pierre Gattégno (Ed. Companhia das Letras) escreve boas tramas psicológicas, porém peca nos finais; Jean-Pierre Alaux e Noel Balen assinam a Série da Vinha (Ed. Rocco) em que os crimes se relacionam a vinhos, vinícolas e sommeliers e, por fim, Fred Vargas (Ed. Companhia das Letras), considerada a Rainha do Crime na França, populariza seu delegado Adamsberg em histórias que – de tão interessantes – mereceriam até uma coluna especial (quem sabe?).

De todo modo, não é de se estranhar a qualidade da escola literária policial francesa: a tradição do país no gênero data de 1860. Émile Gaboriau criou seu detetive Lecoq mais de vinte anos antes de Sherlock Holmes nascer da mente de Conan Doyle na Inglaterra. Seguido por nomes como Maurice Leblanc, Georges Simenon, Gaston Leroux e a dupla Boileau e Narcejac, a literatura policial francesa cresceu e se consolidou. Nem sempre foi fácil: os romances americanos dominavam as estantes, de modo que o ótimo livro Vou cuspir no seu túmulo (Ed.Ediouro) foi publicado na França em 1946, traduzido por Boris Vian do original de Vernon Sullivan. Apenas com o estrondoso sucesso, descobriu-se que Vermon Sullivan não existia e que o verdadeiro autor era mesmo o francês Boris Vian. Será esta a solução para o romance policial brasileiro engrenar de vez?

Atualmente, a França tem prêmios importantes voltados para o gênero policial, como o Prix du Quai des Orfèvres, o Prix du Polar Européen e o Grand Prix de Littérature Policière, garantindo a força internacional das obras vencedoras. Sem dúvida, o filme de Almodóvar também permitiu a popularização da obra de Thierry Jonquet. Apesar de se inspirar em Tarântula, A pele que habito possui diferenças suficientes para distanciar a experiência cinematográfica da literária. Naturalmente, recomendo ler antes de ver.

Além do referido Tarântula, Thierry Jonquet teve publicado no Brasil o policial Para todo o sempre (Ed. Girafa), que também merece atenção e, em menor grau, mescla morbidez, loucura e suspense. Jonquet faleceu em 2009 e, apesar de ter escrito mais de dez romances de mistério, teve apenas Tarântula e Para todo o sempre publicados por aqui. Fica o conselho (intimação?) para as editoras mais atentas.

Nota de rodapé: Para conhecer mais sobre literatura policial clássica, recomenda-se O romance policial (Ed. Ática), de Boileau e Narcejac, e Histoire du roman policier (não traduzido), de Jean Bourdier. 

* Raphael Montes é escritor e publica a coluna "Mistérios para ler antes de morrer (ou ser morto)" aos sábados