A interface entre teatro e cinema se tornou a principal linha de pesquisa da diretora Christiane Jatahy, que, conceituada nos palcos, estreia como cineasta com A falta que nos move, projeto que nasceu de sua encenação, intitulada A falta que nos move... ou todas as histórias são ficção. Tanto na peça como no filme, um grupo de amigos se reúne para um jantar, ocasião em que conflitos vêm à tona. O objetivo de Jatahy não é reeditar uma situação banal, mas, a partir dela, confrontar o espectador com tópicos artísticos contemporâneos, como as fronteiras entre ator e personagem, realidade e ficção, vida e arte.
Os atores (Kiko Mascarenhas, Pedro Brício, Cristina Amadeo, Daniela Fortes e Marina Viana) usam seus próprios nomes e falam de experiências de vida que parecem pessoais, mas não são necessariamente. “Para a peça, nós ensaiamos muito para que o espectador tivesse a sensação de que os atores estavam improvisando. Este também foi o norte de nosso trabalho no filme. Contudo, há uma diferença: a própria realização do filme é posta em questão. As estruturas são reveladas diante do público”, sublinha Jatahy, referindo-se aos momentos em que os atores surgem consultando o roteiro, discutindo sobre o andamento das cenas e recebendo instruções da diretora através do telefone celular.
Em A falta que nos move, os personagens discutem a partir de discordâncias em relação às regras de filmagem. O conflito acirrado se dá, em especial, entre os personagens masculinos – com Kiko assumindo uma posição de controle e tentando evitar que todos jantem enquanto um convidado não chega, e Pedro quebrando eventuais regras sociais estipuladas. “O interessante é que não estabeleci que eles não poderiam jantar enquanto o convidado não chegasse. Há um outro instante em que Marina fala algo como ‘regra não é assim’. E Cristina retruca dizendo que ‘regra é regra’”, destaca. Trata-se de um ponto que não se restringe à instância ficcional. Em seu trabalho, no teatro e agora no cinema, Christiane Jatahy chama a atenção para o desejo, possivelmente utópico, do artista de controlar a sua obra. Em Corte seco, sua última montagem, permanecia no palco, juntamente com a equipe, editando ao vivo, diminuindo ou estendendo as cenas no instante da apresentação.
“Não encaro o erro como erro, e sim como material de trabalho”, resume Jatahy, que já dirigiu as encenações de Carícias, Memorial do convento, Conjugado, Leitor por horas e O livro, além das já citadas A falta que nos move... ou todas as histórias são ficção e Corte seco. A diretora costuma incorporar o acaso e os imprevistos ao trabalho. Não foi diferente com A falta que nos move. “A única coisa que eu não queria é que chovesse na noite da filmagem porque tinha planejado cenas fora da casa. Mas choveu. Entretanto, a chuva trouxe uma atmosfera melancólica que serviu ao filme”, conta. Seja como for, diante de condições meteorológicas desfavoráveis, por que não mudar a data da filmagem? “Eu queria filmar na passagem de 23 para 24 de dezembro. É quando amigos costumam se reunir para comemorar o Natal. E aqueles amigos do filme são como uma família. Pensamos em passar a filmagem para o dia 26. Mas a árvore de Natal da Lagoa muda de lugar e para em frente à casa, e eu não queria essa imagem”, justifica Jatahy, que filmou na sua própria casa. “Eu e Marcelo (Lipiani) construímos a casa. Para a filmagem, houve uma direção de arte. Valorizamos tonalidades, mas não mudamos a decoração”, completa.
Como se vê, o resultado alcançado em A falta que nos move decorre de um processo refinado de condução da direção. “Existem no filme algumas camadas predefinidas. Há cenas em que decidimos o mais importante, mas sem fixar diálogos. Outras em que combinava algo com um ator sem que o outro, com quem iria contracenar, soubesse, um mecanismo que tende a gerar surpresas em cena. E houve imprevistos assimilados pelos atores durante a filmagem”, enumera. Depois dessa experiência, Christiane Jatahy tem vontade de desenvolver outros projetos para a tela grande. Mas o que está confirmado agora é sua volta ao campo teatral, ainda que num espetáculo marcado pelo hibridismo com o cinema. Trata-se de sua apropriação de Senhorita Julia, de August Strindberg, intitulada Julia. “Boa parte da peça será filmada. Haverá cenas pré-filmadas em locação e outras registradas na hora da apresentação. O espectador verá um filme ao vivo”, adianta Jatahy, que conduzirá os atores Fabrício Bolivera e Julia Bernat.