Os organizadores da exposição Mulheres, Artistas e Brasileiras, que ficou em cartaz entre os dias 23 de março e 5 de maio no Palácio do Planalto, em Brasília, tomaram um susto quando ligaram para a família da artista Tarsila do Amaral (1886-1973) para negociar o uso de uma foto do quadro Abaporu (1928) no catálogo do evento.
"Eles não acreditaram quando disse que cederia a imagem de graça. A própria presidente Dilma Russeff fez um esforço enorme para conseguir a peça, que hoje pertence ao Museu Malba, de Buenos Aires, e eu iria cobrar algo por ela?", quer saber Tarsila do Amaral, sobrinha-neta e administradora do espólio da artista paulista, um dos ícones do movimento modernista.
A atitude de Tarsila reflete a filosofia da família da pintora em relação à obra que ela deixou: prefere facilitar sua circulação a enclausurá-la por trás de cláusulas da lei dos direitos autorais. "Isso é muito ruim para o artista", acredita a diretora da Tarsila do Amaral Empreendimentos Culturais, empresa que lida com a concessão de obras e o licenciamento de produtos relacionados à produção intelectual de Tarsila. "A popularidade que a Tarsila desfruta hoje é fruto dessa disposição de facilitar a divulgação de seu nome e de sua obra. Estamos dando continuidade a uma iniciativa de meu pai, cedendo gratuitamente o uso de imagens em livros infantis, didáticos e trabalhos educacionais".
A generosidade dos Amaral é um caso raro no circuito brasileiro de artes. Ano passado, a família da artista plástica Lygia Clark (1920-1988) cobrou R$ 45 mil e criou um pacote de exigências para a liberação da obra Caminhando na 29ª Bienal de São Paulo e acabou tendo a peça excluída da exposição – entre as exigências estava a não publicação no catálogo da mostra de textos de críticos de arte sobre o trabalho da artista. Ainda ano passado, os herdeiros de Lygia, através da associação O Mundo de Lygia Clark, que controla a difusão de suas obras, proibiram o uso do nome da artista mineira numa exposição no Centro Cultural BNB, em Fortaleza.
"Não gosto muito de opinar sobre o comportamento das outras famílias, cada uma tem seus motivos", pondera Tarsila. "Há casos em que o número de herdeiros é grande, o que impede um consenso, gera disputas internas. Os Portinari, por exemplo, têm um projeto muito bacana sobre o Candido (1903-1962), porque o espólio dele é administrado por um único herdeiro, o filho dele, o João Candido. No nosso caso, só tenho a agradecer muito à minha família, por me dar autonomia sobre a obra de minha tia-avó e concordar com minhas decisões. Fico triste por outras famílias em que tal não acontece, pois isso dificulta a divulgação do trabalho de outros artistas, até mesmo modernistas, que acho maravilhosos".
Mulher elegante e refinada, e neta de grandes fazendeiros paulistanos, Tarsila do Amaral enfrentou rejeição dentro da própria família. "Ela sempre foi muito avançada para a época, casou-se várias vezes (um de seus maridos foi o escritor modernista Oswald de Andrade), não se encaixava no perfil da dona de casa e mãe de família que eram atribuídos à mulher de seu tempo. Os próprios irmãos de Tarsila não apoiavam as posições vanguardistas dela", lembra a sobrinha-neta. "Quem sempre tomou conta da minha tia-avó, em sua velhice, foi o meu pai, seu sobrinho querido. Então, a família dela passou a ser o meu avô paterno, meu pai, minha avó e cunhada dela e sua grande amiga, e eu. Quando Tarsila morreu, papai, que era advogado, virou o procurador do espólio dela".
Tarsila tinha apenas 8 anos de idade quando a tia-avó morreu, mas ainda guarda fresco na memória o convívio com a artista. "A neta dela morreu no final dos anos 40, e ela perdeu a filha poucos anos antes de falecer. Então, virei rapidamente o xodó de Tarsila. Ela sempre se referia a mim de forma muito carinhosa como a Tarsilinha", lembra Tarsila, que desenvolveu diversos livros infantis inspirados nas obras e na biografia da artista, como a fábula Um dia para não esquecer. "A casa da minha avó era ao lado da dela. Eu e meus irmãos estávamos sempre lá. Tive o privilégio de ver de perto, ainda muito pequena, a maioria dos quadros importantíssimos que ela produziu, pendurados na casa dela".
Grande parte desses trabalhos farão parte da exposição Percursos Afetivos, que entra em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, a partir de fevereiro de 2012 – a primeira inteiramente à artista desde 1929. É uma versão ampliada da que esteve em São Paulo e Curitiba em 2008. A mostra terá mais de 60 peças, entre óleos sobre tela, como Antropofagia (1929), Carnaval em Madureira (1924), e Os operários (1933), além de roupas, móveis e objetos de decoração da tia-avó. Tentará trazer também o lendário Abaporu (1928), comprado em 1995 pelo colecionador argentino Eduardo Costantini, dono do Malba, por US$ 1,25 milhão. "Tenho uma boa relação com o Costantini. Somos amigos. Tudo que o Malba me pede, eu autorizo", garante Tarsila.
A forma generosa com que trata curadores e instituições artísticas é um trunfo que Tarsila tem nas mãos para fazer da próxima Percursos Afetivos uma edição histórica. "Entendo perfeitamente a dificuldade que as instituições têm em ceder peças da Tarsila de seus acervos. Elas até me pedem mil desculpas, explicam que não têm outra obra para colocar no lugar. O Malba, por exemplo, recebe cerca de mil visitantes por dia, e todos vão lá para ver o Abaporu. O Marcelo Araújo, diretor da Pinacoteca de São Paulo, diz que as pessoas ligam para saber se A negra (1923) está lá, antes de fazer uma visita, e desistem quando descobrem que o quadro está emprestado. É o lado desvantajoso da popularidade de Tarsila", brinca a sobrinha-neta.