Daniel Schenker, Jornal do Brasil
RIO - Em A defesa do mistério, recém-lançada biografia da atriz Fernanda Montenegro assinada pela jornalista Neusa Barbosa, sobressai uma sensação de passagem do tempo como ruptura. Passado e presente são constantemente descritos a partir de perspectivas contrastantes. Vejamos: o teatro brasileiro atravessou um processo de modernização. O ator que aproximava as personagens de sua personalidade deixou de ser valorizado. O funcionamento hierárquico das companhias nas primeiras décadas do século 20 e profissões instituídas como a do ponto foram, pouco a pouco, substituídos por um novo modo de fazer teatro. A televisão, veículo que deu os passos iniciais no Brasil de forma bastante vinculada à experiência teatral, adquiriu contornos próprios à medida que sua penetração se agigantou na vida do país. O alcance do cinema como entretenimento popular também se perdeu e as salas de rua, determinantes no cotidiano de cada bairro, encerraram suas atividades. O Brasil se transformou com o turbilhão de acontecimentos políticos que tomaram o país de assalto da década de 60 em diante.
No entanto, abordar passado e presente como campos opostos parece reducionista. Fernanda Montenegro é a prova disso. A atriz, que se destacou, desde o início da carreira, por um registro de interpretação moderno, começou a trabalhar numa época em que os intérpretes ainda não tinham acesso ao texto completo. Viu astros, como Procópio Ferreira, no palco e assistiu a espetáculos de revista, na Praça Tiradentes. Não renega a relevância desse teatro, hoje considerado como antiquado, na sua formação. Essa foi a minha escola, a escola do ator com verve, jogando com criatividade, malícia e inteligência cênica, o sangue correndo nas veias. E também o ator da diversão, sem preconceito. Sei muito bem o que eram as comédias da Cinelândia. O ator central no meio do palco. Ninguém passa na frente. Ele é quem divide a cena, mas com uma presença louca, um jogo muito popular , conta.
Fernanda Montenegro tem uma trajetória totalizante. Deu partida ao seu percurso profissional na Rádio MEC, na década de 40, onde permaneceu bastante tempo, e encontrou oportunidade de construir uma formação sólida. Ingressou no teatro e na televisão no início dos anos 50, praticamente ao mesmo tempo. No teatro estreou sob o comando de Esther Leão, entrando em contato, em seguida, com nomes de peso Henriette Morineau, à frente da Cia. Artistas Unidos, e Maria Della Costa, do Teatro Popular de Arte, que, aliás, deu à Fernanda uma grande oportunidade ao permitir que interpretasse a protagonista feminina de A moratória, de Jorge Andrade, sob a direção de Gianni Ratto, encenador mais que constante em sua carreira. Na televisão, interpretou um repertório bastante extenso nos teleteatros da Tupi. Não por acaso, constata: Não tenho preferência por nenhum autor. De Beckett até a comédia de boulevard, tenho prazer no jogo, tenho prazer de representar . É uma atriz capaz de se exercitar em gêneros tidos como antiquados e, ao mesmo tempo, de embarcar em projetos marcadamente contemporâneos, como o ótimo The flash and crash days, de Gerald Thomas, e o instigante Da gaivota, operação cênica realizada por Daniela Thomas a partir de A gaivota, de Anton Tchekhov trabalhos em que contracenou com a filha, Fernanda Torres.
Já o cinema surgiu mais tarde no percurso de Fernanda, que participou de seu primeiro filme em 1965, interpretando Zulmira, a protagonista de A falecida, de Nelson Rodrigues, na versão de Leon Hirszman. A atriz marcou presença em outras produções muito importantes, casos de Tudo bem, retrato do Brasil dentro de um apartamento, a cargo de Arnaldo Jabor, de Eles não usam black-tie, adaptação de Hirszman do texto de Gianfrancesco Guarnieri marcada pela mudança de ambientação da peça para o contexto do ABC paulista na virada da década de 70 para a de 80, e de A hora da estrela, bem-sucedida transposição de Suzana Amaral para a obra homônima de Clarice Lispector. Nos últimos anos, período em que se distanciou do teatro, a atriz intensificou seu vínculo com o cinema, especialmente após o furacão Central do Brasil, de Walter Salles.
O fato de Fernanda ter revisitado com frescor gêneros teatrais eventualmente tidos como antiquados ao longo de sua carreira não a impediu de identificar a passagem para a modernidade no teatro brasileiro. A atriz não localiza esta transição no acontecimento histórico mais apregoado a montagem de Ziembinski para Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, com o grupo Os Comediantes e sim na figura de Dulcina de Morais, enumerando as razões em seu depoimento ao livro A defesa do mistério: Ela desde cedo fez a sua companhia. Abrasileirou a prosódia nos palcos do Brasil porque o sotaque nobre era o português. Tirou o ponto. Construiu cenários. Tirou os telões pintados. Teve um repertório extremamente qualificado. Acabou com a carteirinha de prostituta das atrizes e conseguiu o dia do descanso obrigatório. Patrocinou inúmeros concursos de peças para descobrir atores e autores. Dirigiu muito e bem. Introduziu, antes de Ziembinski, uma iluminação dramática. Quando ficou mais idosa, fundou uma escola de teatro. Chamou o que havia de melhor em termos de professores para o corpo docente de sua Fundação no Rio de Janeiro. Depois foi para Brasília, onde criou uma Escola de Artes. E morreu muito velhinha e pobrezinha, sem absolutamente nada. E o que é mais grave: esquecida , descreve Fernanda.
A articulação entre passado e presente foi perpetuada na escolha da peça inaugural do Teatro dos Sete, companhia que ajudou a fundar depois da experiência no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC): O mambembe, burleta de Arthur Azevedo, um dos autores mais representativos da tradição da comédia de costumes. A escolha, considerada por alguns como ultrapassada, rendeu um dos espetáculos mais emblemáticos do teatro brasileiro do século 20. Outras montagens lembradas como divisoras de águas têm seus méritos creditados à qualidade dramatúrgica, a acertos de direção e, principalmente, à força da interpretação de Fernanda Montenegro, que se amalgamou à personagem-título de As lágrimas amargas de Petra Von Kant, na encenação do Teatro dos Quatro, e à Adelia Prado, autora das poesias que levou à cena no extraordinário Dona Doida: um interlúdio.
Nos últimos tempos, Fernanda Montenegro decidiu dialogar com o público sem uma persona fictícia, tanto nas oficinas que ministra pelo Brasil quanto nas conversas com os espectadores, a exemplo das realizadas ao final do espetáculo Viver sem tempos mortos. A defesa do mistério, livro escrito em primeira pessoa fake (uma característica comum aos exemplares da Coleção Aplauso), como se a própria Fernanda Montenegro contasse a sua história, é um desdobramento até certo ponto, despretensioso desse desejo de falar de modo direto, sem interferências. Estou aqui, neste livro, fazendo um pequeno relato da minha vida. Não é uma autobiografia. Nunca pensei em escrever uma autobiografia. Não tenho a capacidade, a paciência, de ficar me cutucando , confirma. Com habilidade, a autora, Neusa Barbosa, fez com que a atriz discorresse sobre o seu processo de criação e a relação diferenciada que estabeleceu com as personagens no decorrer da carreira. Também anexou, três cartas, nas quais Fernanda se posicionou como cidadã diante do convite do então ministro da Cultura do governo Sarney, José Aparecido de Oliveira, para substituí-lo no cargo, do enorme desserviço prestado à cultura pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello e do recebimento da Ordem Nacional do Mérito no governo Fernando Henrique Cardoso.