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O Rio da febre amarela está nas memórias de Nelson Rodrigues

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Wilson Alves-Bezerra, Jornal do Brasil

RIO - Em 1967, aos 54 anos de idade, Nelson Rodrigues começa a oferecer aos leitores do Diário da Manhã suas memórias. A coluna saía diariamente uma velocidade frenética mesmo para os tempos blogueiros em que vivemos e foi publicada entre os dias 16 de fevereiro e 31 de maio daquele ano. Assim nascia o Nelson Rodrigues memorialista, a desfiar, em primeira pessoa, suas lembranças, mágoas e obsessões. Foram exatamente 80 capítulos que seriam, no mesmo ano, parcialmente republicados no livro Memórias: a menina sem estrela, que agora retorna às livrarias.

Há um contraste entre o homem recém-entrado na idade madura e a escrita memorialística, que costuma nos remeter a um velho no fim da vida. A escrita de Nelson Rodrigues é de um homem ativo, porém. Talvez seja o postular-se como velho que faça possível tal escrita; o narrador diz ter vivido outro tempo, o do Rio dos lampiões e da febre amarela, dos bondes e dos enterros residenciais . Tais cenários se alternaram com o cotidiano mais urbano de meados do século 20, em que são escritas as crônicas. E crônicas porque o livro, apesar de estar organizado por capítulos, tem a pulsação e a urgência da escrita do cronista. As evocações do passado, apesar de serem qualificadas pelo narrador como proustianas, têm outro ritmo: Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais . É preciso dizer que nosso Proust de Copacabana não se demora em descrições, seus movimentos são frenéticos, pois vive não no século 19 dos grandes romances, mas no 20 das redações de jornais em que os capítulos são batidos à máquina para o ávido leitor do dia seguinte, em contados seis mil toques, não mais. De modo que é possível dizer que o trânsito entre passado e presente tem menos dessa evocação proustiana que do mecanismo da livre-associação descrito por Freud e tornado técnica de composição nestas Memórias.

Num só capítulo desenha-se uma cartografia da descoberta do corpo feminino, inaugurada com a primeira mulher nua vista pelo cronista na infância uma vizinha louca e muda e que encontra uma continuidade imprevista na nudez de calendário de Marilyn Monroe , para chegar às moças de biquíni das praias cariocas. O nexo entre um capítulo e outro é por vezes uma associação também. Pois alguns capítulos depois já é evocado o primeiro umbigo de odalisca num desfile de carnaval. Escrito ao sabor das associações e obsessões do cronista, o leitor vai compondo um mosaico biográfico, que além das memórias sexuais infantis, passa por acontecimentos da história brasileira, como a ascensão de Getúlio ao poder e seu suicídio. Sempre com a mediação do cotidiano do cronista: a gripe espanhola que o pôs em contato com a morte, obscenamente exposta pelas calçadas do Rio, tornado cenário medieval; a Revolução de 30 que implicou o empastelamento do jornal Crítica do pai, Mário Rodrigues, e trouxe com isso o desemprego e a fome para a família, detalhadamente narrados ao longo de alguns capítulos.

A história dos jornais cariocas, além do próprio Crítica onde Nelson começou sua carreira aos 13 anos de idade como o Última Hora de Samuel Weiner, o recém-surgido O Globo, ou o revolucionário Jornal dos Sports, vai sendo desfiada diante dos olhos dos leitores, pois confunde-se com a história pessoal do ainda jovem autor. Talvez seja mesmo o ambiente dos jornais, mais que o Rio dos lampiões, o cenário privilegiado das crônicas; pois é entre os jornalistas e redações que o menino Nelson nos é mostrado em suas erráticas incursões ao Mangue, em busca não só de sua iniciação sexual, mas também do amor de uma prostituta como a sua idealizada Sônia, personagem de Crime e castigo, de Dostoievski. Não por outro motivo, vê-se o número de vezes em que, diante do corpo indiferente da prostituta, o menino sai fugido de lá, prometendo-se nunca mais voltar.

Estas Memórias inauguram também um momento importante na trajetória de Nelson Rodrigues: o estabelecimento de um discurso do autor acerca de sua própria obra. Assim, nos são apresentadas as motivações de cenas de peças , como o velório de Vestido de noiva (1946), que reconstrói os velórios da infância, e traz ainda evocações do assassinato do irmão. Também a construção do mito da prostituta presente já em Vestido de noiva é generosamente exposta ao longo do livro.

É perversamente prazeroso para o leitor ver Nelson Rodrigues fazer uso de seus recursos narrativos para revelar-se, mostrar-se, conceber-se pelas astúcias da ficção. Memórias nos permite ver Nelson Rodrigues como um personagem de A vida como ela é... E, ao tornar-se personagem de suas memórias, o narrador usa recurso semelhante ao que lançara mão em Otto Lara Resende ou Bonitinha mas ordinária (1962), quando incorpora o amigo jornalista à trama, da mesma forma que fará consigo próprio em Anti-Nelson Rodrigues (1973), uma de suas últimas peças. Entretanto, nas Memórias, o uso da primeira pessoa ganha outra dimensão.

Não está excluída a dimensão do espetáculo, pois o personagem Nelson Rodrigues já se tornara celebridade televisiva naquele mesmo ano, ao apresentar o inusitado programa A cabra vadia em que o ruminante faminto devorava o pasto que era o cenário enquanto o escritor-apresentador entrevistava alguma figura famosa. E também como comentarista esportivo na Resenha Esportiva Facit, onde ficou célebre por dizer que o videotape era burro. Mas nas Memórias ele se apropria do mecanismo da auto-promoção hoje tornado inócuo na sociedade do espetáculo para exibir-se em cores fortes, num narcisismo corajoso e autofágico.

E aí surge a outra dimensão desse Nelson Rodrigues, humano e precário: sua intimidade transforma-se em matéria literária; o período de internação nos Sanatorinhos de Campos do Jordão, em meados dos anos 30, para tratar-se da tuberculose, é um dos momentos mais belos do livro. Nele, o contato com a morte daqueles que conheceu em situação de indigência como a sua, desapropriados da família e tolhidos do desejo sexual, roça o sublime. Também as pequenas tragédias familiares do autor são narradas com técnica refinada e de modo tocante: o assassinato do irmão Roberto Rodrigues na redação de Crítica, por uma mulher que veio acertar as contas por considerar-se vítima de difamação em uma das matérias sensacionalistas do jornal; a morte do pai por desgosto e culpa meses depois; o desabamento da casa do irmão, contemporâneo à escrita das Memórias e que causou sua interrupção por 10 dias. Tudo isso entra no moedor de carne memorialístico e vira literatura.

As ruínas da vida pessoal, a doença, o fracasso, as imposturas do sucesso conferem pungência aos relatos, que se salvam do pastiche e do dramalhão pela auto-ironia do narrador. O relato pode mesmo ser qualificado de corajoso, como a confissão do medo da cegueira desde a infância, passando ao relato do nascimento da menina sem estrela , a filha Daniela, nascida cega por um mal congênito. Páginas em que ficção e memória fundem-se e alcançam um ponto de culminância no continente literário que é Nelson Rodrigues.