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A herança de Camões

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Bolívar Torres, Jornal do Brasil

RIO - É difícil falar sobre o passado. É um presente falso. Deste presente, o que restar, a luz trocando caras entre as inexistentes instâncias temporais escreve o poeta português Gastão Cruz em Ilusão de ótica, um dos textos de A moeda do tempo e outros poemas , sua coletânea que acaba de ser lançada no Brasil. Se para o francês Paul Valéry o poema era a hesitação prolongada entre o som e o sentido , para Cruz e seus contemporâneos, fundadores do movimento Poesia 61, os dilemas entre a forma e o concreto se estendem a um conflito entre gerações. Não por acaso, os 45 anos de versos reunidos no volume transmitem a dúvida diante da herança cultural portuguesa que desafia e persegue.

Para nós, era uma hesitação entre a desagregação e a reconstrução de um discurso explica Cruz, que aproveitou o lançamento no Brasil para participar de um encontro sobre poesia no Real Gabinete Português de Leitura. Precisávamos criar novos caminhos, mas sem ignorar a herança.

A moeda do tempo e outros poemas é o primeiro livro do artista publicado no Brasil. A seleção do pesquisador brasileiro Jorge Fernandes da Silveira (também responsável pela primeira publicação brasileira de outra expoente do Poesia 61, Luiza Neto Jorge) faz uso de uma cronologia invertida de seus 18 livros. Começa com o último trabalho do poeta, A moeda do tempo (2006) e culmina na sua estreia, A morte percutiva (1961). Na distância entre os dois, fica a coerência e continuidade de uma obra que não se cansa em tentar analisar a função da própria poesia.

Trata-se de uma consciência que ganhou mais intensidade nos anos 60, e que reflete sobre a natureza da poesia e a importância da palavra reflete Cruz. Havia uma busca para tornar a palavra cada vez mais densa, como se ela ganhasse noção do seu próprio peso. Há uma fragmentação do discurso. Primeiro, o ritmo é percutivo. Depois, acaba sendo reconstruído numa outra base. Uma revolta das palavras, que procuram ganhar autonomia dentro do verso.

A relação conflituosa com a herança portuguesa se vê principalmente na influência de Camões, que o poeta não nega, e que se reflete na adoção de formas mais clássicas, como o soneto e a canção.

Li Camões quando jovem, como todo mundo em Portugal. Mas Os lusíadas é uma obra muito mal lida, usada pelos professores para revisar a gramática dos alunos. Mais tarde, reli a lírica e senti este impulso para a canção camoniana.

Aqui, porém, o épico ganha contornos melancólicos, onde a glória das grandes conquistas dá lugar ao desancanto pós-colonial. Nascido na Ilha do Faro, em Algarve, e marcado pela geografia da infância, a relação de Cruz com o vasto oceano se dá de forma mais introspectiva e intimista. O navegador indomável dá lugar ao Jeune homme assis au bord de la mer, quadro de 1836 de Jean-Hyppolyte Flandrin, cuja imagem serve de inspiração para o poeta em As pedras negras (1995). A imagem de um jovem nu, sentado em cima de uma pedra diante do oceano, e para quem o O abandono tornou-se/ rígido a irreal e o mar/ junto do qual está representado/ é apenas a perda de não se sabe o que .

Já em Outro nome (1995), a Canção nona evoca a guerra colonial ( 'Correrão águas limpas neste rio/ onde chega hoje o sangue em vão perdido/ e canção cantaremos a diversa/ vida nossa e do tejo ), enquanto a Canção nona faz claras alusões a situação política dos anos 70, possibilidade dos jovens de se expressarem física e sexualmente O silêncio do Tejo que conduz/a poeira da morte e não a lava/ das águas o clarão da surda morte/ de Portugal a limpidez mortal .

Há um tratamento que procura ser inovador e diferente da sintaxe camoniana. Um aproveitamento da estrutura, mas colocando minha própria paisagem, que é minha Ilha de faro. Minha relação com o mar é diferente. É mais subjetiva, sensorial e existencial.