Macksen Luiz *, Jornal do Brasil
PORTO ALEGRE - O público do Porto Alegre em Cena, depois de ter assistido à montagem de La douleur numa interpretação emocionalmente hierática de Dominique Blanc para o texto de Marguerite Duras com direção de Patrice Chéreau, ficou diante do encenador francês, agora como ator. Ou quase. Chéreau leu para uma platéia, silenciosa, respeitosa e inteligente, sábado no Teatro São Pedro, O grande inquisidor (trecho de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski). Leu com o texto nas mãos, mas como um ator arrebatado interpretando monólogo fulgurante.
Em torno de uma mesa, posta em sentido vertical no palco nu, com poucas cadeiras, vestido de preto, o diretor se faz ator para dar vida a palavras que penetram fundamente em questões da existência humana. Para esta leitura dramática, Chéreau não apenas se fixou no capítulo do Inquisidor, mas introduziu o que lhe antecede, a descrição de atrocidades humanas diante de frágeis criaturas, permitindo que o poema-parábola amplie a sua dimensão no palco.
O inquisidor, diante de Cristo que procede a um milagre na sua volta a Sevilha do século 15, em pleno obscurantismo da Idade Média, estabelece confronto com seus atos e preceitos, solapados em nome da permanência da sujeição. Para além das implicações sobre a instituição religiosa, esse trecho do romance russo trata da liberdade como prerrogativa humana, na qual o arbítrio se transforma em material de troca por um pedaço de pão. No discurso do inquisidor são apontados os mecanismos qua mantêm irreconciliáveis liberdade e pão, em que o milagre, o mistério e a autoridade sustentam a inquietude, ansiedade e desgraça, como vocações humanas inexoráveis. Chéreau projeta esta reflexão sobre a liberdade como diretor que atua para revivê-la no espaço da representação.
O papel nas mãos não retira de Chéreau o uso que faz delas para se dirigir a um Cristo ouvinte, possível de ser visto mesmo quando se volta para uma cadeira vazia. Ou quando circula por entre os poucos móveis de cena, dizendo o texto com a inflexão que imagina transmitir a um qualquer outro ator neste solilóquio. É o temperamento do diretor, incorporado no ator, mediado por um texto essencial, e nada mais além disso.
Do Rio Grande do Norte, o Porto Alegre em Cena trouxe o espetáculo A mar aberto, poema-dramático de Henrique Fontes, que também é o diretor. A obra é livremente inspirada em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, mas com indiscutível sotaque nordestino. Os pescadores que se lançam à faina no mar criam o seu imaginário, de onde emerge uma figura que provoca emoções que se confundem com os mistérios de seu ofício. Num cenário em que o cordoamento dos barcos serve de metáfora para os conflitos, e bolas de gudes e flocos de isopor para criar imagens de intempéries, A mar aberto reúne elenco integrado à coreografia que marca essa montagem tão intensa quanto a obra que a inspirou.
* Macksen Luiz viajou a convite do Porto Alegre em Cena