Carina Lessa*, Jornal do Brasil
RIO - Nosso grão mais fino, de José Luiz Passos, revisita a tradição, tanto familiar quanto literária, a partir da narração da história de amor incestuosa entre Ana Corama e Vicente, o narrador. O intuito é fazer com que os objetos da imaginação, dos fatos e da memória entrem em equilíbrio para autenticar um romance de uma realidade própria, sem submissão àquela realidade do choque, da violência, da linguagem crua.
O que alguns críticos tomaram como uma espécie de regionalismo, a partir dos registros da nostalgia em relação às ruínas dos engenhos de açúcar, ganha um novo fôlego no sentido de acoplar ansiedades amorosas num espaço que foge ao clichê urbano. O ambiente, muito além de carregar os males da modernidade, como nos romances regionalistas da década de 30, favorece uma usina de afetos. A linguagem engrandece, há o retorno da prosa poética.
Entrelaçamento
O romance foi dividido em dois planos narrativos: no primeiro, um entrelaçamento mais racionalizado é refletor dos momentos compartilhados com Ana Corama. O narrador em primeira pessoa, distante dos acontecimentos, tenta concatenar dados que revelem a causa da não-concretização do amor entre ambos. O segundo é mais esfumaçado. O narrador coloca-se como personagem ao lado de Ana, há uma espécie de diálogo solitário no qual os dois deixam fluir a rememoração, lançados a um jogo de consolo e flagelação - como afirmou o autor numa entrevista. Num vaivém onírico do êxtase amoroso unem-se duas faces: a do encontro factual e a do encontro fantasioso que potencializa o desejo e faz com que ele prossiga.
Vicente Campelo e Ana Corama estabelecem uma conexão no sobremundo. Em uma nova dimensão criada o amor é concretizado, transbordado por todas as células. Não há fim porque também não há começo no plano dos fatos, mas as camadas envolvem tudo que é capaz de potencializar o amor que o passado negou. Será em meio a essas vicissitudes que Zelino entrará como o número três do encontro e do desencontro, o responsável pela interdição dos afetos.
A morte do pai de Ana e o seu casamento com o tio de Vicente são motivos potenciais para a não-concretização do encontro amoroso. Zelino será o terceiro elemento que vai ligar duas pessoas ou realidades afastadas, a favor da semelhança, da comunicação.
No duelo entre o que aconteceu e o que é imaginado pelos personagens na solidão de seus quartos, há um fluxo de consciência que os eleva a outras dimensões. Em relação à forma narrativa, os fluxos parecem estar se dirigindo ao próprio leitor. A percepção dos personagens é expandida a níveis profundos, como a relembrar, de fato, um passado que não existe.
O romance divide-se em camadas. Em função de um todo significativo, visualizamos flashes que estabelecem um nexo real ou imaginário. Há um elo que tateia a conexão com o mundo. Este elo constrói-se pela memória: da tradição familiar, das máquinas do engenho de açúcar, do amor fraturado, da morte da cadela, do irmão Zelino, do casamento de Ana com o tio de Vicente. Toda essa conexão é tecida por meio das vozes narrativas de Ana e Vicente. Enxergamos tudo pela visão sublimada dos personagens.
Expansão da memória
A narrativa é uma fermentação em etapas. A fluidez da forma do romance tem começo muito antes de o narrador começar a narrar. Os pensamentos dos personagens já foram realizados muito antes do encontro, não há um ponto de partida, o romance ou as falas dos personagens acontecem por expansão. Uma espécie de expansão da memória que tem como meta estabelecer uma relação possível. No ato do fluxo de consciência, a memória revela ao personagem uma forma de buscar imagens passadas e familiares para se construir um novo presente.
O romance tece a crise do narrador
Vicente. Em cada um desses instantes de crise (no zepelim, na caçada, na cheia) há o confronto com um dos observadores ou intercessores: o pai, o irmão, o marido , afirmou Passos. O percurso que vai do "doce à cólera" passa pelas construções idealizadas em confronto com a realidade. O encontro passível de conflitos e adulações possui a promessa da eterna completude. Neste sentido, pode-se dizer que ambos se amarão para sempre.
A linguagem ornamental dita barrocamente construída por Flávia Cezarino Costa provoca uma relação autêntica e sensorial, tanto entre Ana e Vicente, quanto no leitor que tem a impressão cognitiva de apreender o romance. Trata-se de uma linguagem biológica ou quimicamente construída, guiada pela pipeta e pelas substâncias que jazem para além de sua própria matéria .
No fim do livro, Vicente vivencia uma cheia em 1975 que marcou a história de Pernambuco. Será neste momento que ele tem uma espécie de revelação sobre o passado frustrado. Na casa onde mora, herdada de sua família decadente, em meio às águas, busca (sem sucesso) o relógio do arcebispo (metáfora da tradição familiar). Na busca por esse símbolo da tradição, Vicente toma consciência dos porquês que cerceavam qualquer possibilidade de sucesso amoroso. O fantasma do suicídio do pai de Ana que resultou no casamento com o tio Gaetano. Um casamento frustrado pelas conveniências familiares, pela venda de todos os bens de Dahirou (pai de Ana) para Wellington (avô de Vicente).
No plano da tradição literária, outro aspecto que não deve ser deixado de lado é a semelhança espiralar com a obra de Osman Lins. Semelhança que dialoga diretamente com a narrativa em etapas aqui apresentada. José Luiz Passos confessa o contato com a obra do escritor: Pago um tributo a Osman, reescrevendo a cena que me deu essa chave . Outras cenas da literatura brasileira são revisitadas como o encontro em Missa do galo , de Machado de Assis, ou a morte da cadela Baleia em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. O autor permiti-se o diálogo com a tradição e produz uma linguagem literária autêntica.
Nosso grão mais fino contraria positivamente a literatura do aqui e agora, comprometida com o efêmero e descomprometida com o passado. Portanto, representa na literatura brasileira contemporânea um romance de efetiva modernidade, na medida em que converge para um momento que já está por vir e que aos poucos vem deixando sua marca.
* Escritora e mestranda em literatura brasileira pela UFRJ.