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Ensaios de Ítalo Calvino iluminam literatura da 2ª metade do século 20

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Silviano Santiago*, JB Online

RIO - Publicados entre 1955 e 1980, antes, portanto, do póstumo Seis propostas para o próximo milênio, os imperdíveis ensaios literários de Ítalo Calvino se encontram finalmente traduzidos ao português e reunidos em Assunto encerrado. Por recobrirem um período crucial para as artes europeias, quando o vento da renovação soprava sobre o velho continente ainda tomado pela expiação e o luto, a coleção serve para iluminar a vida literária no período e esclarecer várias facetas da personalidade do ficcionista e crítico italiano. A ser levantada pelo leitor, a primeira e mais previsível das incógnitas vira pergunta na curta e incisiva Apresentação . Por que e para que o romancista escreve ensaios? Ao respondê-la, Calvino se adentra por um caminho que se bifurca, a fim de salientar, pela dupla negação de lugares comuns, a originalidade de sua presença atrevida e precursora na literatura da segunda metade do século passado.

Dois paradoxos respondem, portanto, à pergunta inicial e inquietante. Não é para o sustento de sua ficção que o crítico dublê de escritor escreve ensaios, visto que raramente põe em prática no trabalho de arte o que prega na crítica. Não os escreve tampouco para os jovens colegas de ofício, já que crítico e ficcionista não têm vocação para mestre, promotor ou agregador . O romancista não aduba a ficção com o estrume da reflexão crítica, embora nela se chafurde com júbilo e deleite. Tampouco o crítico os escreve para tomar assento à frente de discípulos, embora seja um expositor impecável e persuasivo. Conclui: Meu objetivo talvez fosse estabelecer algumas linhas gerais que servissem de pressuposto a meu trabalho e ao dos outros, postular uma cultura como contexto em que situar as obras ainda a escrever .

De imediato, podemos enquadrar o crítico Ítalo Calvino na esteira de algumas almas literárias inclinadas ao diletantismo aristocrático, que estão a desaparecer na época dos equívocos pragmáticos, que é a nossa. Talvez seu irmão seja o europeu, hoje cidadão americano, George Steiner, autor de Depois de Babel. Como Calvino, Steiner é uma espécie de homem do renascimento que, com erudição, elegância e ironia, se especializa em desatar o intricado nó que a grande literatura ata com os cadarços da linguagem e da história. Vale dizer que os irmãos são abnegados beneditinos da tradição literária. Já os primos ricos de Calvino podem ser o poeta T. S. Eliot, autor do ensaio A tradição e o talento individual , e o multifacetado Jorge Luis Borges, compilador da História universal da infâmia. Ao lado de Calvino, ambos se distinguem por fazer render o peixe da crítica inteligente, sem pregar o padre-nosso aos lambaris.

Os quatro autores citados são como esses caminhões-frigoríficos que preservam a matéria putrescível e rara da literatura com o intuito de entregá-la tal e qual à eternidade.

O crítico antípoda de Calvino é o conterrâneo e contemporâneo Umberto Eco, que passa a representar aqui a genealogia dos críticos acadêmicos, cuja obra se alicerça em metodologias e princípios epistemológicos rigorosos, requerimento indispensável para que o trabalho analítico-reflexivo se aproxime disto a que as agências de fomento à pesquisa chamam de ciência . Refiro-me aos cientistas da linguagem dos linguistas aos semiólogos, e destes aos analistas de discurso.

O pós-moderno equipado

No frigir dos ovos literários, Ítalo Calvino é o menos modernista dos modernistas, e por isso é o mais bem equipado representante da pós-modernidade, tanto na ficção quanto na ensaística. O autor, que pertenceu ao grupo matemático de romancistas conhecido como Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), não se aparenta a André Breton, que se especializou em declamar os mil e um manifestos do surrealismo para melhor expurgar os dissidentes. Nem se aparenta aos nossos queridos Mário de Andrade e Haroldo de Campos, cujo carisma inquestionável trabalhava a favor da aliança de discípulos diletos e pouco inspirados em torno das novas causas estéticas seja o modernismo, seja a poesia concreta. Ai daquele que se transformasse em diluidor , para retomar o inquisitório termo de Ezra Pound. A realidade programática da pós-modernidade é a negação do manifesto. É a afirmação da potencialidade.

*Escritor e crítico literário