Daniel Schenker, JB Online
RIO - Livro reúne entrevistas realizadas ao longo de 40 anos com José Celso Martinez Corrêa
As entrevistas com José Celso Martinez Corrêa realizadas no decorrer de 40 anos (entre 1968 e 2008) e reunidas por Karina Lopes e Sergio Cohn no novo livro da coleção Encontros, da editora Azougue exaltam o caráter múltiplo do Teatro Oficina, que passou por transformações contundentes desde que foi fundado, em 1958, por jovens estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, até os dias de hoje.
Zé Celso divide a trajetória do grupo em quatro fases. O primeiro Oficina era chamado de Idade do Ouro, depois teve o Oficina Subterrâneo, em seguida, o que voltou com Ham-let, e agora o de Os sertões, muito aberto socialmente , enumera em entrevista publicada na revista Caros Amigos, em 2004.
O diretor possivelmente apelida de Idade do Ouro o Teatro Oficina do início dos anos 60, referente à montagem de exemplares das dramaturgias americana e russa. Um teatro que respeita o texto, em vez de utilizá-lo como matéria-prima para um confronto direto com o sistema e como instrumento de libertação dos próprios artistas.
A ruptura
O Oficina da ruptura é o que Zé Celso chama de subterrâneo, que abarca um período bastante extenso. Começa a partir do instante em que a companhia passa a fazer oposição direta à ditadura e a reivindicar uma cena desestabilizadora construída com o intuito de retirar o espectador de uma espécie de torpor. Atravessa os anos de exílio, quando o diretor desembarca em Portugal, em plena Revolução dos Cravos, e em Moçambique. E inclui a década de 80, em que Zé Celso não monta espetáculos, apesar de não ter se mantido inativo.
A terceira fase, que tem Ham-let como ponto inicial, traz a concretização de um projeto de teatro-passarela (concebido por Lina Bo Bardi e Edson Elito), carnavalesco e dionisíaco, características que se tornam a espinha dorsal das realizações seguintes do grupo.
A etapa mais recente perpetua as principais vertentes do Oficina, postas em prática na primeira metade da década de 90, canalizadas para uma empreitada de escala monumental a encenação de Os sertões, de Euclides da Cunha, dividida em cinco partes que somam 26 horas de duração.
A conexão com o Bexiga, bairro onde o Oficina está instalado, se acentua através do Projeto Bexigão, que agrega à companhia crianças das imediações, e por meio da polêmica com o Grupo Silvio Santos, que, desde os anos 80, planeja a construção de um shopping no local. Uma iniciativa que sufocaria a interação do espaço cênico do Oficina com o meio externo.
É possível detectar ainda um outro momento do Oficina, anterior a todos: o do Zé Celso dramaturgo, que escreve textos de natureza autobiográfica, como Vento forte para papagaio subir, no qual evoca sua vida em Araraquara.
No decorrer desse tempo, José Celso Martinez Corrêa rompe com a representação, tanto no que se refere à concepção dos espetáculos quanto ao registro buscado para os atores. Destaca a noção de que o acontecimento teatral não se resume à encenação de um texto.
E para de fazer teatro, no sentido convencional do termo, passando a praticar o que chama de te-ato uma expressão que visa ao desmascaramento da estrutura de funcionamento das relações sociais e à suspensão do conceito tradicional de personagem.
O diretor critica o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia fundada pelo industrial italiano Franco Zampari, em 1948, referência até hoje de montagens luxuosas que atraíam a burguesia paulistana da época.
É bem possível que o incômodo de Zé Celso se refira ao fato de a companhia de Zampari remetê-lo ao Oficina da Idade do Ouro, fase que procura superar já no final dos anos 60. Era terrível para mim ver a platéia dos sábados se deliciando com a mensagem boboca, nojenta mesmo, que Ralph, personagem de A vida impressa em dólar, concluía no fim da peça. Com que dificuldade os atores engoliram aquele texto ridículo em que tanto acreditávamos cinco anos atrás , diz Zé Celso a Tite Lemos, em entrevista publicada na revista aParte, do Tusp, em 1968, época em que já estava envolvido com as montagens de O rei da vela e Roda viva.
Entretanto, Zé Celso parece, em certa medida, investir numa oposição algo maniqueísta entre o Oficina e o TBC, que não deve ser lembrado apenas pelo perfil aristocrático de suas encenações. Afinal, o TBC foi importante por ter suscitado uma dupla e saudável internacionalização: no sentido de propiciar o vínculo dos atores brasileiros com diretores europeus e no de colocá-los em contato com uma ampla dramaturgia estrangeira, até então pouco encenada.
Augusto Boal
O Teatro de Arena também não é abordado por Zé Celso com muitas nuances. O diretor ressalta a relevância de Augusto Boal, que tinha acumulado experiência nos Estados Unidos, mas critica a companhia em especial Gianfrancesco Guarnieri. No Arena havia um padrão de homem, de mulher, de povo , declara a José Arrabal em entrevista à revista Civilização Brasileira, em 1980.
É preciso reconhecer, porém, a contribuição do Arena no que se refere ao lançamento de uma nova proposta de teatro e de relação com o público. Uma proposta suscitada pelo espaço circular, que faz com que os espectadores fiquem dispostos bem próximos ao palco e inviabiliza cenários de grande porte.
Polêmicas à parte, José Celso Martinez Corrêa não é um encenador pego em contradições, e sim um artista que assume os seus conflitos. Atualmente, permanece fiel aos princípios artísticos que vêm norteando boa parte de sua carreira. A sua afirmação, propagada durante um programa Roda Viva, exibido na TV Cultura, em 1988, reverbera nos dias que correm. Durante minha vida inteira, nunca fiz nada de que não gostasse. Agora, isso me custou muito . Chamado de Decano do Ócio, Zé Celso continua lutando para manter a própria liberdade.