Mariana Filgueiras, JB Online
RIO - Só para quem já caçou com Pedrinho: livro analisa, uma a uma, as obras infantis do autor
Depois de uma prova oral cascuda de português, na qual acreditava ter tirado um plenamente termo equivalente a um 10, em oposição a um simplesmente , que valia um zero um Monteiro Lobato chateado, aos 13 anos, escreveu uma carta à mãe contando a reprovação: Vi rapazes que diziam que pouquíssimo era advérbio serem aprovados... E eu que respondi tudo saí inabilitado . Pois é. Monteiro Lobato já tomou bomba em português. Teria vindo daí, quem sabe, sua deliciosa e sabugosa implicância pelo ensino e uso empolado da gramática, representado em diversas histórias e personagens?
Cada capítulo de Monteiro Lobato: livro a livro, da editora Unesp, dá uma pista para desvendar o universo do escritor que dirigiu o imaginário de tantas infâncias. Sob organização da professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, da Unesp, estudiosos da obra lobatiana foram convidados para analisar, cada um, as obras infantis do autor, em volume enriquecido pelas ilustrações e capas das primeiras edições. Uma lupa para a leitura. Ou making of, como prefere a organizadora.
Creio que o livro apresenta um Lobato artífice do texto, usando régua e compasso, corrigindo rumos ao longo de diferentes edições. Assim, o leitor que retornar ou chegar a Lobato a partir do livro que organizamos terá acesso à oficina do escrito comenta Marisa. Se este acesso é de extremo valor para escritores, ele também encanta leitores, já habituados, por exemplo, ao conhecimento de bastidores de filmes que DVDs oferecem. É isso: o livro dá acesso ao making of da obra infantil lobatiana...
Lupa para uma leitura política
Neste making of é possível ver além das sobrancelhas cerradas, pedaço de rapadura no bolso e agulha presa com linha na lapela diz-se que Lobato sempre levava uma para o caso de alguém precisar. O livro abre as gavetas de um escritor bastante preocupado com sua obra, leitores e com o seu país.
A alusão aos problemas brasileiros sempre esteve presente na obra de Monteiro Lobato, afirma a pesquisadora Mariana de Gênova, autora do capítulo sobre o livro O picapau amarelo, de 1939, que abre a perspectiva de uma leitura política da obra de Monteiro Lobato.
Em 1937, com a publicação de O poço do visconde, a crítica social tomou as terras de Dona Benta, que deixou de ser uma representação de um pequeno sítio paulistano para tonar-se símbolo do Brasil por inteiro. Na história quem se lembra? foi o Visconde de Sabugosa o primeiro a garantir que havia petróleo no país, uma defesa incondicional da modernidade e industrialização por parte de Lobato.
N'O picapau amarelo, de 1939, os personagens do Mundo da Fábula se mudam para o sítio: Branca de Neve, Peter Pan, Cinderela, Dom Quixote, entre outros. Enquanto a proprietária compra terras para acomodar os novos hóspedes, Monteiro Lobato finca a cerca no terreno das discussões sobre a imigração, a mestiçagem, a urbanização e a questão agrária esta aparece claramente na discussão de dois fazendeiros sobre a complicada situação das terras que Dona Benta queria comprar. Monteiro Lobato já questionava o progresso anteriormente defendido em O poço do Visconde, preparando o terreno para o livro que viria a ser o mais contundente da sua fase mais crítica: A chave do tamanho, de 1942.
Neste livro, Lobato não se atém apenas aos problemas nacionais, como também cutuca a Segunda Guerra Mundial, então no auge. Uma oportunidade comercial (internacional) como nenhuma anterior. O capítulo que esmiúça a obra, escrito pelo pesquisador Thiago Valente, mostra como o livro já era um desejo antigo do escritor - o livro que Rabelais esqueceu como Lobato conta em carta ao amigo Godofredo Rangel, em 1912 (portanto, 30 anos antes da publicação). Um cronista do tempo presente, mas que busca uma visão original , explica Valente.
Monteiro Lobato: livro a livro é para iniciados. Apesar da linguagem não-acadêmica (a apresentação defende uma linguagem clara e cristalina como água de pote ) os artigos apresentam detalhes para aficionados, como o percurso de cada edição, as mudanças sofridas ao longo das décadas, desde a discussão de seu projeto original até as alterações como minúsculas ou maiúsculas.
A porteira do Sítio do Picapau Amarelo ainda está aberta, mas entra primeiro quem já caçou com Pedrinho, remendou a Emília ou comeu os bolinhos de chuva da Tia Nastácia.
Qual Emília? A magricela ou a de rosto rechonchudo?
A Emília já foi bem magricela. Quando punha as mãos na cadeira, se fazia mais presunçosa do que o seu próprio inventor imaginava. Depois, vendia ingenuidade num rostinho rechonchudo. No capítulo sobre as ilustrações que acompanhavam as obras de Monteiro Lobato, a pesquisadora Maria Alice Faria explica a importância dos artistas na obra de Lobato, que fizeram, com ele, uma revolução paralela no imaginário infantil: algumas edições chegaram a ter 172 páginas de textos e 81 de ilustrações, uma ousadia editorial para a época.
Os que tiveram nas mãos as edições da década de 30, por exemplo, conheceram a Emília ainda magricela, pelo traço de Belmonte. Benedito de Barros Barreto, o Belmonte, era um ilustrador de perfil político crítico, mais conhecido pelas charges que documentaram a Segunda Guerra Mundial nos jornais. Prova de sua transgressão: no Emília no país da gramática, de 1934, Belmonte arriscou convenções gráficas das histórias em quadrinhos, como as onomatopéias ilustradas ou o uso de traços ao redor da cabeça, para representar o susto. Um casamento feliz com o estilo inovador de Lobato. Foi Belmonte quem fez, pela primeira vez, um desenho começar na capa, atravessar a lombada e terminar na contracapa.
Mas foi a Emília seguinte, do ilustrador Le Blanc, que se tornou a boneca de pano clássica no imaginário dos leitores. Bochechuda e infantil, a nova Emília descaracterizava completamente a personalidade da Emília real. É a autora do capítulo, Maria Alice, quem deixa a sugestão: Resta cobrar de nossos editores a publicação urgente de novas edições de Lobato com as irreverentes ilustrações de Belmonte .