Angélica Paulo, Agência JB
RIO - A primeira vez que Reinaldo Lace viu Bethania foi em 1997, na turnê do show mbar, com direção do aclamado diretor Fauzi Arap. Na época com apenas 17 anos, este professor de Português e Literatura sabia que seria impossivel voltar atrás: foi amor à primeira vista. De lá pra cá, já perdeu as contas de quantas vezes assistiu ao show. Só na turnê Brasileirinho conferiu nada menos que 12 apresentações.
- Tudo o que sou hoje perpassa por Bethania conta, emocionado, este morador de Cavalcanti, zona norte do Rio, que conseguiu arrebanhar mais um fã.
Seu ex-aluno Leonardo Monteiro, fã de rock, também se rendeu ao talento da cantora. E foi junto a uma platéia lotada que Reinaldo e Leonardo conferiram a estréia do show 'Dentro do mar tem Rio', baseado nos dois últimos cds da cantora, 'Pirata e Mar de Sophia'. Com direção de Bia Lessa, acompanhada por grandes músicos e sem fugir à fórmula de dividir o show em dois atos e intercalar música e poesia, Bethania passeia por um vasto repertório que vai do baião de Luiz Gonzaga às letras de Arnaldo Antunes, sem perder o esplendor.
As águas que canta representam não só sua vida, seus rios de infância e seu mar de vida adulta. Representa o povo brasileiro, em toda a sua pluralidade. São cachoeiras de divindades, negras ou índias, que traduzem a história de um Brasil heterogêneio, multifacetado. Kirimurê, de Jota Velloso, fala da Iara índia, sereia de água doce, do caboclo Tupinambá, que defende sua terra e ama sua gente. Já Dorival Caymmi surge em verso e melodia num dos melhores momentos do show, fazendo o público se deleiar com 'Dona do Raio: O vento', uma ode à Iansã, orixá dos ventos e tempestades. É o sincretismo religioso, marca registrada do brasileiro, presente nessa homenagem de Bethania às suas raízes.
A decantada Santo Amaro também aparece na música de Roque Ferreira e Delcio Carvalho e a platéia, de inicio quieta e embevecida, vai-se soltando aos poucos, e em 'Sereia de Água Doce', de Vanessa da Matta, faz graça com o público, que delira. Entre eles, um dos mais empolgado é justamente Reinaldo, que canta, grita, interage, se emociona. Entre gritos e pulos, traduz em gestos o que a música o leva a sentir.
Nos momentos mais intimistas, Bethania resgata Drummond, João Cabral de Mello Neto e, num dos momentos mais aplaudidos do show, o imortal Fernando Pessoa, na figura de seu heterônimo Álvaro de Campos: 'E tu, Brasil, república irmã, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir/ Ponham-me um pano por cima de tudo isso!/ Fechem-me isso à chave e deitem a chave fora (...)/ Deixem-me respirar!/ Abram todas as janelas!/ Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo'. O poema de 1917 mostra que o poeta era, também, um visionário.
Sempre descalça e com seu microfone de fio, Bethania flutua no palco, leve e intensa, com uma potência vocal que transforma até mesmo o rap de Arnaldo Antunes em fina melodia. No último ato, suas águas desaguam no samba da Portela e suas margens são banhadas pelos carnavais do mano Caetano, com Chiquita Bacana, Chuva Suor e Cerveja. Era a emoção que faltava para Reinaldo completar a travessia e chegar, são, salvo e emocionado, ao fim da viagem.
- Queria que não acabasse nunca sintetiza. Ao seu lado, mais contido, Leonardo observa o ex-professor e murmura em concordância: - Eu também.
Odo Ya Bethânia. Odo Ya, rainha do mar.