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Agnès Varda, a pioneira da afirmação feminina

Divulgação -
Agnès Varda brinca com a própria imagem em cena de "Visages, villages", feito em parceria com o fotógrafo JR e recebeu o troféu LOeil dOr, em Cannes
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No momento em a disparidade de gêneros agravada pelo sexismo torna-se uma das pautas centrais do cinema, dentro e fora das telas, a mulher que ganhou notoriedade global como diretora por fazer da afirmação do feminino o eixo dramático (e ético) de sua carreira sai de cena, após uma batalha contra um câncer no seio: Agnès Varda (1928-2019). “Cléo das 5 às 7” (1962) é a ficção mais famosa de sua prolífica obra (dirigiu cerca 54 produções), que, segundo rumores, deve ser homenageada postumamente durante o 72º Festival de Cannes (14 a 25 de maio), em sua seleção de clássicos. Seu último trabalho, “Varda par Agnès”, lançado há um mês no Festival de Berlim, começa a ser pedido por exibidores dos circuitos de arte e por cinematecas de toda a Europa. Todos querem prestar loas à realizadora que foi um pilar da Nouvelle Vague, o movimento que modernizou a maneira de se filmar na França, a partir de um engajamento com os pleitos revolucionários do período, revelando gênios como Truffaut, Godard, Chabrol.

“Parecia uma maluquice uma garota que nem tinha visto tantos filmes assim se propor a abrir um debate estético numa França onde as vozes masculinas eram preponderantes nos sets, só que eu tinha a ingenuidade e a bravura para fazê-lo”, disse Agnès na Berlinale.

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Agnès Varda brinca com a própria imagem em cena de "Visages, villages", feito em parceria com o fotógrafo JR e recebeu o troféu LOeil dOr, em Cannes (Foto: Divulgação)

Aos 90 anos, ela morreu nesta madrugada, lutando de modo sereno contra seu tumor, sem abrir mão do trabalho. Pioneira da modernização política e narrativa da produção audiovisual, a diretora de “As duas faces da felicidade” (Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1965) e “Os renegados” (Leão de Ouro em Veneza, em 1985) nasceu Arlette Varda, mas mudou legalmente seu nome aos 18 anos. Ela tinha em seu currículo um Oscar honorário, uma Palma de Ouro de honra ao mérito e o troféu Berlinale Camera., construída a partir de 1954, quando finalizou “La Point-Courte”. Hoje, afirma-se que este é o filme-gênese do fluxo de modernização da arte audiovisual na França, que gerou a “Nova Onda” francófana nas telas, entre 1958 e 1970. Foi uma época revolucionária, na qual ela foi casada com o mestre europeu dos musicais Jacques Demy (1931-1990), realizador de “Os guarda-chuvas do amor” (1964). Viveu com ele de 1962 até a morte do diretor, com quem teve um filho, o ator Mathieu Demy, hoje com 46 anos. Antes dele, numa relação com o ator Antoine Bourseiller (1930-2013), teve uma filha, Rosalie Varda, uma aclamada figurinista, que, nos últimos anos, trabalhou como produtora de Agnès.

“Temos muitas grandes mulheres fazendo filmes, mas esse número pode ser maior do que é. O mundo precisa da diferença, da diversidade”, disse a cineasta em fevereiro, em sua passagem pelo Festival de Berlim, onde lançou “Varda par Agnès”, um misto de autorretrato e diário de viagem.

Já lançado na França, o projeto é resultado das viagens que a cineasta fez pelo mundo durante o lançamento de “Visages, Villages”, produção feita em parceria com o fotógrafo JR, laureada com o troféu L’Oeil d’Or, a Palma de Ouro dos documentários, em Cannes em 2017. Por esse exercício de reflexão da imagem, ela chegou a ser indicada ao Oscar, em 2018. Reestruturado para ser exibido na TV, como série, “Varda par Agnès” acompanha uma jornada dela de Paris até Los Angeles e, de lá, pra China, passando em regista 60 anos de imagens produzidas a partir de um instinto autoral.

“Eu sei que o Brasil anda passando por maus bocados políticos, mas estou longe demais de vocês para opinar. Resistir ainda é uma forma poética de se expressar. Em 1968, era o que a gente mais fazia, entre filmagens e conversas sobre grande diretores. Cinema é pra ser vivido e essa vivência envolve levar o mundo para os sets, para os diálogos, para as conversas ao fim dos filmes”, disse Agnès ao JB, em recente conversa na Espanha, em meio ao lançamento de “Visages, villages” na Europa. “A função social de um artista é investigar a brutalidade e a beleza, para instigar a emoção e o pensamento. Intervir na sociedade pela expressão poética é parte do processo de criação e faz do cinema uma ferramenta de denúncia e de transcendência”.

Em várias enquetes respeitadas de melhores filmes de todos os tempos, encontra-se o nome de Agnès, quase sempre representado por “Cléo das 5 às 7” (1962), lançado no ápice da Nouvelle Vague. Em sua visita ao Brasil, em 2009, no Festival do Rio, ela frisou a importância moral que aquele longa teve na luta por desmistificar tabus da representação feminina. Esse manifesto da força feminina, indicado à Palma de Ouro, entrou na lista dos cem maiores longas de língua não inglesa apurado pela BBC de Londres com mais de 200 críticos do planisfério cinematográfico todo. O recorrente (e merecido) carinho dos críticos com Agnès é uma gratidão à sua contribuição para novas (e livres) formas de representação da mulher no cinema. “Venho de uma época em que eu era a única cineasta em atividade num ciclo cheio de homens. Cá entre nós, acho que o número atual de mulheres cineastas ainda é muito aquém do que a arte e o mundo. Meus filmes são femininos e aportam à realidade a percepção de que as mudanças são graduais e que dependem da integração de todos”, disse Agnès em um recente colóquio em San Sebastián. “A vida ganha um novo tom quando vista por uma câmera”.

Divulgação - Agnès Varda