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Crítica - Imagem e palavra: Terrorismo semiótico

*** (bom)

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Uma semana antes de conquistar uma Palma de Ouro especial, em Cannes, por “Imagem e palavra” (“Le livre d’image”), um colírio semiótico, construído como ensaio documental, para abrir nossos olhos sobre nossa subserviência às narrativas, Jean-Luc Godard (aos 88 anos) deu uma entrevista via Facetime para explicar certas escolhas: “As filmagens deste projeto não foram ação, foram arquivos: preciso do passado para falar do futuro”. O passado ganha os contornos de “Johnny Guitar” (1954), faroeste de afirmação do feminino (ou do feminismo, pra parte respeitosa da crítica), numa aparição de Joan Crawford e Sterling Hayden.

O western é de Nicholas Ray (1911-1979), diretor cujo humanismo desmesurado e a rejeição à ordem burguesa encantou Godard e seus colegas de Nouvelle Vague, o movimento que modernizou a prática cinematográfica na França, entre os anos 1950 e 60, num engajamento em causas políticas e revisões comportamentais. O fragmento de Ray entra como um farol numa colagem (a expressão godardiana por excelência de 2001 pra cá) de cenas de batalha, de terrorismos, de publicidades. A mesma iluminação se dá ao redor de um frame de “Tubarão”, de Spielberg, usado com ironia. Todas as citações cinéfilas, que vão se descontruindo conforme Godard vai superpondo a elas uma narração filosófica. “O som, no cinema, precisa ser pensado de outra forma, autônoma, como se fosse um organismo à parte da imagem. Complementar, claro, mas com significação em si”, defende ele.

Mastigando e dilacerando signos jornalísticos ou ficcionais, o diretor cria uma linha de debate na qual questiona as representações acusatórias ao Estado Islâmico, para desnudar um discurso de construção de vilania e culpa, e confronta o onipresente imperialismo do cinema americano. Enfim, é o que o cineasta - nascido em Paris em 3 de dezembro de 1930, mas naturalizado suíço - sempre faz, desde “Acossado” (1960): seus experimentos são filme, são semiologia, mas são, antes de tudo, Godard, uma grife de digressões. E reações. O resultado plástico e o discursivo não têm, como espetáculo, o vigor de “Nossa música” (2004), o melhor longa dele neste século, mas há potência de sobra, a ser digerida aos poucos, sob azias morais. 

Tags:

cinema | crítica