Após construir exitosa carreira como curta-metragista (em obras espetaculares como "Nova Dubai"), Gustavo Vinagre enfim se lança em seu primeiro longa unindo os gêneros primais do teatro - a tragédia e a comédia - e retirando o sumo da melancolia a partir disso. O realizador abraça uma encenação que se desdobra também entre o real e a ficcionalização, explorando o fascínio que sua biografada (e co-autora) exerce de maneira inequivocamente natural.
Ao reencontrar a amiga Julia Katharine e rodar com ela alguns trabalhos, Gustavo teve a ideia de mais uma vez ouvi-la repetir as histórias de sua vida, só que agora na frente de uma câmera. E é basicamente essa a premissa simples, mas potente e superlativa. Como uma Sherazade moderna, Julia abre seu baú de memórias em relatos carregados de humanidade e despudor, em relação a inúmeros assuntos, da sua relação com a mãe a sua transexualidade, passando pela sua história com o cinema e uma relação pedófila familiar sofrida, tratada com imensa coragem e insuspeita naturalidade.
Ao transfigurar valores documentais e afetivos em um jogo também ficcional, embaralhando em cena aberta as certezas do espectador, Gustavo realiza um estudo de personagem com a riqueza que só Eduardo Coutinho podia conseguir, e a encenação com múltiplas possibilidades que talvez só o próprio Gustavo seja capaz de entregar, nos transportando para um mundo repleto de sensibilidade, que precisa ser desnudado para poder tentar transformar o nosso hoje.
PS: as sessões do filme terão um brinde luxuoso, a companhia do curta "Tea for two", primeiro trabalho de Julia como diretora, estrelado por ela e Gilda Nomacce, ambas em espetaculares interpretações para uma releitura moderna de um melodrama rasgado.
*Membro da Associação de Críticos
de Cinema do Rio de Janeiro