ASSINE
search button

Orquestras carentes e cheias de talentos

Educação musical em lugares de penúria tem dado frutos valiosos também no Brasil

Divulgação -
Pequenos alunos da Orquestra de Cordas da Grota ensaiam
Compartilhar

Chama a atenção a quantidade de projetos e pessoas que se dedicam através da música a desenvolver uma educação de melhor qualidade nas comunidades carentes brasileiras.  Educação de melhor qualidade sim, pois em lugares em que faltam professores para alfabetização em português, a alfabetização musical poderia até parecer um luxo.  No entanto, é graças ao aprendizado da música que muitos jovens têm encontrado suas vocações ou, pelo menos, uma alternativa mais interessante do que perambular ao léu pelos perigos que assolam quem vive nas favelas.

Macaque in the trees
Isabela Mendonça da Cruz em apresentação da Orquestra Maré do Amanhã (Foto: Marco Brendo)

A ideia de levar a educação musical a jovens sem acesso a escolas de música e em lugares de penúria tem dado frutos valiosos não somente no Brasil, mas também em outros países. Um dos exemplos mais notáveis é o do venezuelano Gustavo Dudamel, um dos regentes mais respeitados do mundo e atual diretor musical da Orquestra Filarmônica de Los Angeles.  Dudamel iniciou sua educação musical no "El Sistema", um programa de educação musical iniciado na Venezuela em 1975 por José Antonio Abreu e que tem como lema "Música para mudança social".  O objetivo do "El Sistema" tem sido sistematizar a instrução e prática coletiva e individual da música através de orquestras sinfônicas e coros, com a missão de organizar o desenvolvimento humano e social.  O trabalho desenvolvido na Venezuela, que tem hoje orquestras em diversas cidades e mais de um milhão de jovens se beneficiando, deu tão certo que vários outros países importaram o programa. É o caso do "El Sistema EUA".  Sim, os Estados Unidos copiaram o programa venezuelano, assim como outros países, entre eles Canadá, Brasil, Coreia do Sul, Inglaterra, Paraguai, Itália etc.

No Rio de Janeiro, há diversos projetos envolvendo milhares de crianças e adolescentes, professores e educadores. E como está longe de ser fácil crianças terem concentração para estudar, ainda mais hoje em dia, em que tudo tem de ser feito na velocidade da luz, quando uma criança ou um adolescente começa a participar de um projeto de música, seja para tocar um instrumento, seja para cantar, há um ganho adicional, pois o aluno acaba adquirindo uma disciplina que é usada para outras áreas.  É comum observar que as crianças e adolescentes envolvidos nesses projetos acabam por ter também um melhor rendimento escolar.

Entre as várias ONGs que se dedicam a trabalhar nas comunidades carentes estão a Orquestra Maré do Amanhã, Orquestra de Cordas Da Grota, Ação Social pela Música, Orquestrando a Vida, Camerata Uerê, PIM (Programa Integração pela Música), Academia Juvenil da Orquestra Petrobras Sinfônica, todas na linha do "El Sistema", mas com suas adaptações aos locais onde trabalham, inclusive porque a maioria dessas orquestras está em lugares dominados pelo tráfico de drogas e, por isso, exigem cuidados especiais. No entanto, os traficantes, surpreendentemente, não se envolvem com esses projetos e demonstram aceitar essa "invasão" de cultura nas comunidades.  Nisso, os traficantes diferem de outros pais, pois não querem que os próprios filhos sigam seus caminhos.

Os projetos vão desde pequenas orquestras a grupos maiores.  A Camerata Uerê, por exemplo, é um conjunto de 25 alunos que faz parte da escola de música Uerê, que tem 40 alunos.  Yvonne Bezerra de Mello, a idealizadora deste projeto, conta:  "A Camerata Uerê dá 20 concertos por ano e é muito apreciada. Três dos alunos já tocaram nos Estados Unidos.  No próximo dia 21, tocarão com a renomada violinista americana Marion Turano no programa Música no Museu.  Marion também dará aulas de violino no Projeto Uerê localizado na Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré.

Também na Maré está a Orquestra Maré do Amanhã, criada por Carlos Eduardo Prazeres, em 2010, com o objetivo de ensinar música clássica a crianças e adolescentes de comunidades em risco social. Seu primeiro núcleo começou preparando 40 crianças no ensino de teoria musical, violino violoncelo e flauta.  Hoje são 3.500 crianças envolvidas no aprendizado de música e uma orquestra.  "Inicialmente, algumas crianças têm preconceito e falta de interesse em estudar música clássica", diz Prazeres, "então começamos ensinando músicas como as de Anita, Michael Jackson, Ludmila etc.  Uma vez que o interesse pelo instrumento é despertado, a passagem para Mozart acontece naturalmente".

É o caso de Isabela Mendonça da Cruz, 14 anos, moradora de Duque de Caxias que vai três vezes por semana ensaiar na Orquestra Maré do Amanhã, onde também tem aula.  Ela conta que entre suas músicas favoritas estão as de Mozart e as "Bachianas", de Villa-Lobos, e seu sonho é ser violinista.  Isabela vai à Maré porque seus pais não acharam um lugar que ensinasse o instrumento onde moram.  Do outro lado da baía, na Grota do Surucucu, Niterói está a Orquestra de Cordas da Grota, que tem como diretores Márcio Paes Selles e Lenora Pinto Mendes.  Um trabalho que começou há 23 anos e hoje tem 17 núcleos fora da Grota, em cidades como Maricá, Itaboraí, São Gonçalo e até em Nova Friburgo. Somando todos esses núcleos, há mais de mil alunos participando.

"A música tem um poder grande de agregar as pessoas", afirma Selles, "e de proporcionar momentos felizes.  Acho que isto é o mais importante, as pessoas estarem juntas, tocando e se apresentando em concertos.  Viajando também, pois há concertos em diversos lugares fora da própria cidade. Então é uma oportunidade interessante, que abre novas perspectivas para esses jovens.  Sou suspeito para falar, mas acho que só a música salva.  A arte tem esta possibilidade de ser um território diferente em que as pessoas se entendem e conseguem realizar uma porção de coisas, apesar da diversidade de cada um. É um trabalho fascinante mesmo!

Mileni Rocha, de 16 anos, conta sobre o impacto do estudo de música em sua vida. "Comecei a estudar na Orquestra de Cordas da Grota.  Foi uma grande oportunidade, aprendi muitas coisas que fora da orquestra não poderia, foi um lugar em que eu me achei.  Eu toco flauta doce, violino e contrabaixo. Gosto muito de música e espero seguir este caminho por muito tempo e provavelmente lecionar".

Outro músico da Orquestra de Cordas da Grota é Carlos Rodrigues, hoje com 18 anos.  Carlos começou na orquestra com 7 e diz que ela já lhe proporcionou muitas experiências:  "Este ano, eu entrei para a faculdade e isto não teria acontecido se não fosse a orquestra, pois todo conhecimento musical e de vida que tenho aconteceu através dela". Um problema constante e comum a todos esses projetos é a busca de recursos financeiros.  Prazeres conta que a Orquestra da Maré já ficou sem tocar por quase um ano, mas foi salva pelas parcerias e principalmente pela empresa chinesa State Grid, que aceitou investir sem colocar um limite de prazo.  O projeto inaugura este ano uma sede própria, com um teatro para 120 pessoas e mais nove salas com tratamento acústico para ensaios de instrumento e um estúdio de gravação.  A inauguração será acompanhada de um concerto e a partir deste mês haverá concertos todos os domingos para a comunidade.

Selles diz também que a situação melhorou quanto às parcerias:  "Estamos com apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Niterói.  Conseguimos também aprovação na lei de incentivo à Cultura de Niterói e isso tem dado um gás à orquestra e às nossas atividades.  Na lei de incentivo, a Ecoponte é a nossa grande parceira, além da Brazil Foundation e do nosso decano João Moreira, que nos apoia através da Videofilmes desde 2000.  No próximo Carnaval, a Orquestra de Cordas da Grota será tema de uma escola de samba em Niterói.

Muitos dos alunos desses projetos tornam-se professores ou monitores e desenvolvem novos núcleos, multiplicando o que receberam, além de criarem novas orquestras e grupos de música.  Mesmo os que não seguem a carreira de músico se beneficiam da participação nos projetos sociais, pois recebem uma base e uma estrutura para se desenvolverem em outras profissões.  É certo apostar que, se esses projetos continuarem, boa parte dos problemas de educação no Brasil será resolvida através da música.

*Colunista de música clássica