Satanás foi o nome mais evocado no 69º Festival de Berlim, ontem, por conta da passagem, digna de rolo compressor, da carreata de "Vice", um dos principais concorrentes ao Oscar, com oito indicações, pela capital alemã: no Brasil, o filme não para de lotar salas, somando 126 mil ingressos vendidos em apenas dez dias em cartaz. Foi Christian Bale, ator galês celebrizado sob a máscara do Batman, entre 2005 e 2012, quem criou essa associação do longa-metragem de Adam McKay com o Diabo, ao atribuir ao Senhor das Trevas seu modelo para viver o ex-vice-presidente dos EUA Dick Cheney, braço direito de George W. Bush.
"Obrigado, Satã, pela inspiração", disse o astro, dia 6 de janeiro, ao receber o Globo de Ouro por seu desempenho, 20 quilos mais gordo, para dar conta da figura rotunda de Cheney. A menção recorrente ao Demônio trouxe má sorte para a Berlinale: o cineasta chinês Zhang Yimou, que concorria ao Urso de Ouro com "One second", entrou em contato, na segunda, para tirar o longa (um dos mais esperados do ano ) da disputa, alegando problemas técnicos em sua finalização. É a bruxa da Casa Branca solta em solo germânico, onde McKay vê sua sátira moral ser consagrada em exibições hors-concours numa das maiores vitrines de filmes autorais do planeta.
"Trump não é como Cheney: ele é um produto do populismo, uma consequência dos fatos que mudaram a política nos últimos 50 anos. Dick Cheney, não. Ele é um sujeito de muitas contradições, que nunca se arrepende do que faz. Fico me perguntando se ele dorme bem ou se os demônios vão atrapalhar seu sono", questionou Bale, em Berlim, esbanjando o sorriso de quem emplacou um dos maiores trabalhos de sua carreira, iniciada quando ele, ainda menino, fez "Império do Sol", sob a direção de Steven Spielberg.
Consagração tão grande quanto a sua é o mar de elogios que McKay anda colecionando pelo filme, cuja bilheteria mundial beira US$ 55 milhões. Indicado aos Oscar de melhor direção e roteiro original, ele fez fama no humor pastelão com comédias cults como "O âncora" (2004), mas mudou seu perfil ao investigar a crise econômica dos EUA de 2008 em "A grande aposta", também com Bale. Ali, já levou um Oscar pra casa.
Mas o impacto que vem causando com "Vice" - um projeto produzido por Brad Pitt - é ainda maior. Recebeu convite para sessão de gala na Berlinale, ganhou chamada de capa na edição de fevereiro da revista francesa "Cahiers du Cinéma" e pode receber, neste domingo, o Writers Guild Award, prêmio anual do Sindicato de Roteiristas de Hollywood.
"Brad Pitt é um desses artistas que amam o cinema e produzem filmes por amor, trabalhando num esquema em que não impõe pressão sobre os diretores atrás de resultados específicos, o que é uma garantia de liberdade", disse McKay ao JB numa coletiva em Berlim que atrasou por quase 40 minutos, por intervenção de... Satã. "O filme deve muito à boa prática do jornalismo, não apenas pela importância que os bons artigos sobre o papel histórico de Cheney tiveram na construção do roteiro. Eu coloquei jornalistas muito talentosos para entrevistar, em off, as pessoas mais próximas de Cheney e descobrir quem ele é. É curioso ver que um sujeito que cozinha o jantar de sua família e tem uma conduta super divertida com as pessoas possa ser o responsável pela morte de milhares de pessoas e não se preocupar com isso".
McKay refere-se a uma das muitas estratégias polêmicas tomadas por Cheney em oito anos de governo: após o 11 de Setembro, ele acreditou que os americanos precisavam de um inimigo a quem dedicar seu revanchismo e decidiu que o Iraque de Saddam Hussein (1937-2006) era o alvo ideal. Resultado: 600 mil mortos e um país arrasado. "Cheney tem sua humanidade, mas ela está na trilha errada. Ele é alguém que faria tudo de novo", disse Bale, hoje de volta à sua silhueta atlética habitual. "O peso que ganhei fez de mim uma morsa. O pior era ver o Adam obcecado pelo meu umbigo gordo".
A Berlinale termina no dia 17, agora com 16 concorrentes ao Urso de Ouro, sendo o favorito o longa da Macedônia "God exists, Her name is Petrunya", de Teona Strugar Mitevska, sobre uma historiadora desempregada que é alvo de sexismos e conservadorismos, ao se apoderar de uma cruz da Igreja Ortodoxa que só homens poderiam pegar. Exibido ontem, o filme turco "The tale os three sisters", de Emin Alper, sobre a relação de três mulheres com histórias inventadas pelo pai, deslumbrou a todos com sua fotografia.
*Roteirista e crítico de cinema