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Crítica - Teatro: O pior cego é o que não quer ver

Divulgação -
"O cego e o louco" faz temporada no Sesc Copacabana
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O mito de Narciso, o deus fascinado por sua própria história, sua beleza, nos funda na construção da individualidade e nos faz crescer. Mas, como tudo na vida é positivo/negativo, mais/menos, yin/yang, nos ocorre também a existência do superego, aparato que nos castra, nos censura. E ainda temos o alterego, o nosso outro eu, que pode ser um avesso apenas, mas o avesso do avesso em muitos casos. Essa dualidade, na ambiguidade humana que nos move e nos paralisa é o centro de “O cego e o louco”, texto de Claudia Barral inédito no Rio.

São dois personagens, dois irmãos. Nestor um artista plástico, que apesar de cego desde jovem, tem uma obra poderosa. Dominador, sarcástico, avassalador domina Lázaro, o irmão mais jovem, aparentemente um jovem normal, solícito, mas totalmente tímido, paralisado ante a presença feminina. Essa divisão cortante, afiada, sem qualquer fiapo transforma os episódios que se desenvolvem em tempo real, sem qualquer referencia encenada a algo que já tenha ocorrido, numa luta de boxe com pequenos intervalos. São dois irmãos, dois meninos que o mais velho agride o outro, leva-o para as cordas. O caçula fica no ringue sem esboçar reação.

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"O cego e o louco" faz temporada no Sesc Copacabana (Foto: Divulgação)

Nestor é interpretado por Alexandre Lino que obtém uma interpretação vigorosa, sem os cacoetes caricatos, quando o personagem tem algum defeito físico. Sua voz é forte, embalada, mas sem ódio e sem agressividade aparente. Usa as piadas, as gargalhadas, o tom de autoridade para esmigalhar o irmão. Lázaro por Daniel Dias da Silva é o pequeno nerd encarnado. Servil, tímido, obediente, grudado na obtenção na aprovação impossível do outro, sua atuação encontra o dificílimo equilíbrio de evidenciar a timidez.

O premiado texto de Claudia Barrabal, nascida em Salvador e radicada em São Paulo, é o jogo do que é visto, o aparente e aquilo que deve ser interpretado e percebido. Como um quadro que olhamos e nos perguntamos o que o autor quis dizer com isso, “O cego e o louco” nos apresenta, até a surpresa retumbante do seu final, essa fina linha de distinção entre o que está acontecendo no palco e a que lugar vamos chegar. Aí está a principal força desse texto. Nestor é o artista ainda que mutilado no principal sentido de um pintor, a visão. Lázaro, ao contrário, leva o nome daquele que ressuscita; o homem comum que apanha da vida, mas é capaz de se reerguer e continuar.

A direção de Gustavo Wabner opta por um tom aparentemente realista em um cenário que se percebe de épocas passadas, mas não é datado. Os figurinos lembram algum clássico europeu, de um tempo mais frio, mais soturno e formal, sem distinguir exatamente que local. Então, a ação se desenvolve sem especificação de época ou lugar, o que mais se aproxima da angústia permanente do sujeito. Os dois irmãos são a inequívoca metáfora do sujeito baudelaireano: o se dividido entre o bem e o mal, o senso comum e a evasão da arte, entre a solidão e a busca do amor. No dualismo, os diálogos se sucedem, as lembranças são narradas, os pequenos embates se repetem em torno de tudo virar objeto de apostas, incansavelmente perdidas por Lázaro. O belo espetáculo nos faz lembrar que de louco todos temos um pouco. Ou muito. Depende da cegueira de quem nos vê. Ou da nossa própria.

Serviço

O CEGO E O LOUCO - Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160; Tel.: 2547-0156). Sex. a dom., às 18h. Ingressos a R$ 30. Duração: 60min. Classificação: 12 anos

* Professora do Depto de Comunicação da PUC-Rio e doutora em Letras

Tags:

cego | crítica | louco | teatro