ASSINE
search button

Negra é a voz de Roterdã

Festival holandês, respeitado como uma vitrine autoral na Europa, dedica uma seção só à nova geração de diretoras e diretores do cinema negro brasileiro, em tributo a Zózimo Bulbul

Reprodução -
Zózimo Bulbul estrela e dirige "Alma no olho", marca do curta-metragem brasileiro dos anos 1970
Compartilhar

Empenhado desde a sua criação, em 1972, em servir como vitrine para narrativas de verve autoral mais preocupadas em explorar novas formas de se representar as angústias nossas de cada dia do que com bilheterias, o Festival de Roterdã, na Holanda, reservou espaço em sua 48ª edição (23 de janeiro a 3 de fevereiro) para os exercícios de poesia e de resistência das novíssimas gerações de cineastas negros no Brasil - seara que chama atenção ainda pela crescente presença de mulheres na direção. Sabrina Fidalgo é uma delas: UM DE SEUS MELHORES FILMES, “Rainha” - saga de uma jovem em busca de reconhecimento à frente da bateria de uma escola de samba - já ganhou 12 prêmios e impressiona espectadores por onde passa.

O mesmo se dá com o trabalho da diretora Glenda Nicácio, que trouxe da Bahia o doce “Café com canela”, há dois anos, e que leva a terras holandesas um trabalho novo, “Ilha”, codirigido por Ary Rosa. Só que para afirmar o presente, Roterdã – que compõe com Berlim, Cannes, Locarno, Veneza e São Sebastián a seleção de ouro das mostras competitivas da Europa – vai reverenciar o passado: a seção dedicada aos realizadores brasileiros afrodescendentes se chama Soul In The Eye, ou em português, Alma no Olho, mesmo nome de um curta de 1973 que transformou o ator Zózimo Bulbul (1937-2013) em um dos maiores realizadores do mundo quando o assunto é a diáspora africana. Seu curta cultuado estará lá, além de produções como “Aniceto do Império em dia de alforria”, de 1981, e “Abolição”, de 1988.

Macaque in the trees
Zózimo Bulbul estrela e dirige "Alma no olho", marca do curta-metragem brasileiro dos anos 1970 (Foto: Reprodução)

“Desenvolvemos essa mostra para falar do Zózimo a partir da dimensão política de seu legado no contexto do cinema negro brasileiro”, diz a doutora em História Janaína Oliveira, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora responsável pela curadoria da mostra para Roterdã. “O ‘Alma no olho’ já havia sido exibido no festival antes e, no fórum do Pan-African Cinema Today, ficou um interesse de se saber mais sobre Zózimo e sobre o que estava acontecendo no Brasil em termos das produções negras”.

Primeiro ator negro a protagonizar uma telenovela no Brasil (“Vidas em conflito”), ainda nos anos 1960, Zózimo atuou em marcos do Cinema Novo e partiu para a direção apostando em uma narrativa experimental: “Alma no olho” usa uma coreografias de gestos imbuídos de poesia e de ironia que traduzem a opressão contra os negros. Seu esforço abriu espaço para a leva de artistas que hoje trazem prêmios para o cinema brasileiro dos maiores festivais do mundo. É o caso de Sabrina e seu carioquíssimo (mas universal) “Rainha”, que integra a mostra de 28 produções elencadas por Janaina, incluindo filmes amplamente debatidos (e bem resenhados) nas redes sociais como “Kbela”, de Yasmin Thayná, e “Peripatético”, Jéssica Queiroz.

“É uma honra enorme ter meu filme ‘Rainha’ finalizando um ciclo de exibições tão vitorioso numa mostra que homenageia Zózimo Bulbul e toda uma nova geração de realizadores negros brasileiros em um dos maiores festivais de cinema do mundo, como Roterdã. Essa é uma coroação e ao mesmo tempo um sinal de que novos ventos estão surgindo na cadeia evolutiva do cinema brasileiro, que sempre privilegiou filmes eurocentrados de realizadores idem. Quem sabe agora, com esses novos olhares cinematográficos, nosso cinema consiga enfim decolar no cenário mundial?”, diz Sabrina.

Seu nome já virou referência de inquietação e de requinte narrativo no exterior, assim como acontece com o mineiro André Novais Oliveira, dono de uma estética naturalista transgressora, lapidada em cults como “Quintal” (2015). Seu novo longa-metragem, “Temporada”, a ser lançado no Brasil no dia 17, arrancou aplausos em Locarno, Turim e Brasília, onde ganhou o troféu Candango de melhor filme, vitaminado pelo desempenho da atriz Grace Passô no papel de uma agente de saúde. Além dele, entraram no pacote selecionado por Janaina filmes como “Assim”, de Keia Serruya; “BR3”, de Bruno Ribeiro; “Dia de Jerusa”, de Viviane Ferreira; “Eu, minha mãe e Wallace”, da dupla Eduardo e Marcos Carvalho; e “Nada”, de Gabriel Martins.

“Hoje há uma variedade nessa geração. Nela, existe desde uma forma mais convencional de se dialogar com o trauma colonial, o trauma do racismo, até a presença de narrativas que vão buscar formas diferentes se reconectar com as diásporas. HÁ também filmes que vão, de uma forma disruptiva, trazer a dimensão do cotidiano, extrapolando-as de forma singular”, diz Janaina. “Há filmes que se impõem pelo interesse no cotidiano das pessoas negras sem focarem em grandes acontecimentos, em grandes viradas: o interesse está em olhar essas pessoas sendo quem são, mesmo que as relações traumáticas estejam por ali, mas não no primeiro plano”.

Há muitos documentários na seleção do Alma no Olho de Roterdã, incluindo um trabalho inédito de um dos mais respeitados diretores brasileiros revelados nas últimas três décadas: Joel Zito Araújo (de “Filhas do Vento”). Ele estreia na seleção o .doc “Meu amigo Fela”, sobre o cantor nigeriano Fela Kuti (1938-1997), estruturada a partir do convívio do músico com seu biógrafo, o cubano Carlos Moore. “Criador de uma sonoridade poderosa, Fela fazia músicas políticas. Dizia que não fazia canções de amor mas, sim, canções revolucionárias, o que faz dele um artista atualíssimo aqui pra nós deste Brasil militarizado que acaba de começar”, diz Joel Zito. “A cabeça de Fela foi feita pela agitação cultural trazida por pensadores da questão africana, como Malcolm X e, ele mesmo, acabou virando uma referência para o estudo do pan-africanismo, que está presente nessa mostra de Roterdã”.

*Roteirista e crítico de cinema

Tags:

cinema | festival | filme | negro