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Dólar furado à italiana: JB entrevista o quadrinista Gianfranco Manfredi

Um dos lançamentos mais luxuosos dos quadrinhos no país do ano é Mágico Vento, caubói ecológico vindo da Itália

Divulgação -
Para autor, a coisa mais difícil hoje na Itália é encontrar quem desenha cavalos bem - algo que já foi um requisito básico nas escolas de Belas Artes
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Sob constante patrulha da correção política, o faroeste sobrevive no audiovisual do empenho de cineastas autorais, como Tarantino (com “Django livre” e “Os oito odiados”) e dos irmãos Coen, que andam bombando na Netflix com “A balada de Buster Scruggs”. Mas nos quadrinhos europeus, o gênero, importado dos grandes clássicos de John Ford e Howard Hawks, continua sendo um dos mais rentáveis veios de dramaturgia, graças a heróis como Mágico Vento, hoje nas bancas brasileiras à frente da luxuosa graphic novel “Faca comprida”. Criado na Itália, em junho de 1997, para a Sergio Bonelli Editore, a maior indústria de “fumetti” (“HQs”) de seu país e uma das maiores do mundo, o galante pistoleiro de trajes e vocabulário indígenas virou um ícone internacional do intercâmbio cultural e da defesa da Natureza. Seu nome de berço era Ned Ellis: usava farda, matava em nome do Exército e mal tinha tempo de contemplar a beleza das pradarias que sujava de sangue até sofrer um acidente ferroviário, do qual foi salvo por um sábio do povo Sioux. Entre pajés, caciques e curumins (ou xamãs, chefes e crianças), Ellis deu lugar aos ditames do Capital e aprendeu a escutar as matas, os rios e as visões que adquiriu em um poder de clarividência, além de ter ampliado sua rapidez no gatilho e na luta com facões.

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Para autor, a coisa mais difícil hoje na Itália é encontrar quem desenha cavalos bem - algo que já foi um requisito básico nas escolas de Belas Artes (Foto: Divulgação)

Especialista nas reflexões sociais e política de Jean-Jacques Rousseau e sua metáfora do Bom Selvagem (a pureza que transcende as castrações do processo civilizatório), Gianfranco Manfredi, escritor responsável pela criação desta mistura de Zorro com Tonto, concebeu este vigilante do Oeste como sendo um guardião meio bastardo das tradições indígenas. É o que se vê na tensa aventura narrada no álbum de luxo que a Mythos (editora paulistana responsável por traduzir o melhor da Bonelli no Brasil, como Tex e Zagor) lança agora no mercado nacional. Com traço de Giuseppe Barbati e Bruno Ramella, a trama do gibi originalmente intitulado “Lungo Coltelo”, traduzida por Julio Schneider, põe Mágico Vento no rastro de caçadores de escalpos ligados à morte de seu guru, Cavalo Manco. A história é narrada com chumbo quente mas com pitadas de humor na figura do parceiro habitual do herói, o jornalista alcoólatra Willy Richards, um sósia de Edgar Allan Poe (1809-1849), autor de “O corvo”.

Hoje autor regular da revista “Tex”, Mafredi, nascido em Senigallia, no leste da Itália, há 70 anos, é um compositor e ator que vive de quadrinhos desde 1991, quando estreou nas páginas de “Gordon Link”. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o fascínio de sua pátria pelos caubóis americanos e teoriza sobre a sobrevivência do bangue-bangue nos dias de hoje.

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Gianfranco Manfredi (Foto: Divulgação)

Como o senhor definiria o universo de Mágico Vento em relação à tradição do western?

Gianfranco Manfredi: Bem, ele começou como uma mistura de gêneros e de universos literários, combinando o mundo cheio de fronteiras culturais Fenimore Cooper, em “O último dos moicanos”, com o ambiente gótico de Edgar Allan Poe… como se fosse um faroeste sobrenatural, um western de horror. Durante o desenvolvimento de sua série em quadrinhos mensais (de 1997 a 2010), os temas étnicos e históricos foram ganhando mais evidência. Se formos à gênese do quadrinho, ele apresentava algo na linha do western fantástico da DC, com o pistoleiro Jonah Hex, com elementos dos contos de faroeste sombrios publicados pela revista “Creepy”. Com o tempo, fomos ganhando voz própria e originalidade. Talvez alguns elementos xamânicos tenham relação com a obra do cineasta Alejandro Jodorowsky (de “El Topo”), seja em seus filmes ou em seus quadrinhos (como “O Incal”). Mas o investimento em fatos históricos deu a Mágico Vento uma linha específica entre a magia e o realismo.

Que contribuições artistas do desenho como Bruno Ramella e Giuseppe Barbati deram à saga de Mágico Vento?

Muitos desenhistas ajudaram a série a crescer: Barbati e Ramella, desenhando juntos, deram uma continuidade ao visual que eu buscava. Já Goran Parlov deu um toque romântico à figura de Ned Ellis. José Ortiz deu uma caracterização a Willy bem próxima à imagem de Poe. Pasquale Frisenda delineou graficamente o espírito de western gótico da série. Ivo Milazzo trouxe-nos mais elegância e realçou, no desenho, conflitos psicológicos. E tem Darko Perovic, que está fazendo o especial que a gente prepara para o meio do ano [de 2019], é um especialista em tramas de tons épicos. Listo esses nomes para mostrar o quanto Mágico Vento está aberto à diversidade. É difícil encontrar outro personagem tão aberto à diversidade visual, só Dylan Dog [detetive especializado em criaturas das trevas que é um dos maiores sucessos da Bonelli desde os anos 1980, atualmente também nas bancas brasileiras].

Qual é a maior riqueza do faroeste como gênero e o que mais te fascina no filão?

Primeira coisa: os cavalos. A coisa mais difícil hoje na Itália, mesmo no time de “Tex”, é encontrar quem desenha cavalos bem. Isso já foi um requisito básico nas escolas de Belas Artes, mas hoje é difícil encontrar ilustradores que consigam reproduzir bem a anatomia e os movimentos dos animais. Quando eu comecei a escrever Mágico Vento, resolvi aprender a cavalgar, estudando sobretudo a técnica dos caubóis. Não estranhe isso: eu sou sagitariano. Há uma intimidade entre o cavalo e o pistoleiro que é essencial ao entendimento do bangue-bangue: faroeste é homem + animal, como se fossem um só.

*Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - Gianfranco Manfredi