As infinitas camadas de um beijo: confira crítica de 'O beijo no asfalto'

Se o ator Murilo Benício vez por outra é injustamente acusado por parte da crítica como preguiçoso e repetitivo, a estreia do diretor Murilo Benício é, em resumo, impactante. Mas como é difícil resumir o manancial de possibilidades que Benício apresenta nessa nova e inusitada adaptação de Nelson Rodrigues, que já tinha rendido uma versão exemplar de Bruno Barreto. Qual era então o motivo para revisitar esse texto que já parecia definitivo na telona? A atualidade do seu tema era o ponto 1, e o ponto 2 é o “jogo de cena” proposto por esse jovem e já pronto realizador.

Benício filmou as reuniões de elenco, o diálogo entre os intérpretes, suas marcações, suas colocações, suas intenções e fluxos de ideias, e montou isso ao desenvolvimento da própria obra em si, criando algo único e inesquecível. Diante do número infinito de propostas cênicas, o filme opta por quantas forem possíveis, e dá-lhe de montar as cenas casando as leituras com as cenas propriamente ditas, em encenar atos apenas nos ensaios, em compor seus planos mostrando tudo (câmeras, cenários, microfones, maquiagem), a homenagear a um só tempo o teatro, o cinema, seus atores e Nelson, em apenas uma hora e meia onde nada sai do tom.

O elenco é uma tropa de elite da dramaturgia nacional: Lázaro Ramos, Débora Falabella, Fernanda Montenegro, Stênio Garcia, Otávio Müller, Augusto Madeira, Marcelo Flores, todos em estado de graça dentro, fora e intercenas. Com uma fotografia “possuída” do nosso mestre genial Walter Carvalho, Benício reencena uma tragédia sobre o destrutivo e manipulativo poder da imprensa, e da palavra definitiva. Considerando apenas essa estreia, o que foi visto não é o surgimento de um diretor talentoso, mas de uma força da natureza atrás das câmeras, como na frente.