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Festival de Marrakech põe em retrospectiva a obra de Jillali Ferhati, que levou às telas do mundo um retrato poético da sociedade marroquina

Rodrigo Fonseca -
Jillali Ferhati
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Depois de homenagear medalhões de Hollywood como Robert De Niro e prestar tributo à diva belga da Nouvelle Vague Agnès Varda, o Festival de Marrakech, já na reta final de sua 17ª edição, que termina neste sábado, empresta à prata da casa holofotes à altura do que cedeu ao cinema estrangeiro, reverenciando um dos mais respeitados diretores de seu país: Jillali Ferhati. Em 1977, o ator e cineasta - egresso de uma bem-sucedida carreira nos palcos com repercussão das mais positivas no teatro francês – levou ao Festival de Cannes um retrato poético da sociedade marroquina, entre a fábula e o naturalismo quase documental: “A breach in the wall”.

Em 1991, foi a vez de o hoje septuagenário realizador disputar o Leão de Ouro no Festival de Veneza com “La plage des enfants perdus”. “Naquele ano, eu vivi uma grande alegria quando esse filme saiu das telas venezianas para uma projeção no Canadá, onde me disseram que a realidade que eu retratava parecia muito com fatos do cotidiano de pequenas cidades canadenses, o que me deu a percepção de uma certa universalidade na minha forma de narrar”, disse Ferhati ao JORNAL DO BRASIL em Marrakech, que exibe um de seus trabalhos mais recentes, “Ultimate rebellion”, sobre um escultor às voltas com um dilema amoroso.

Macaque in the trees
Jillali Ferhati (Foto: Rodrigo Fonseca)

Na entrevista a seguir, o diretor de cults como “Pillow secrets” (2013) fala ao JB como funciona a maneira marroquina de filmar:

JORNAL DO BRASIL - Como funciona, de modo geral, a indústria de cinema no Marrocos?

JILLALI FERHATI: Funciona à base de produções de médio orçamento, de tom mais intimista, e de alguns documentários. A expressão “médio” se refere a um custo estimado em US$ 450 mil, US$ 550 mil. A gente vive numa luta para driblar tanto os clichês institucionalizados pelo olhar ocidental quanto os clichês que nós criamos.

Que clichês são esses?

O Ocidente costuma olhar para o cinema do Marrocos atrás de um cartão-postal específico, seja de encantos, seja de tragédias. Não há um esforço dos ocidentais para driblar as convenções etnográficas a fim de se enxergar pessoas, não arquétipos em culturas como a do Marrocos. Por outro lado, internamente, passamos muito tempo investindo em filmes que nos representam pela vitimização. É claro que temos problemas, mas todos têm, e nossa sociedade vai além de nossos dilemas sociais. E o diferencial nisso está na opção de se retratar personagens femininas fortes. Os iranianos conseguiram construir para si um cinema muito potente ao retratar diferentes peculiaridades de sua sociedade. A expressão “cinema do Irã” sugere quase um gênero: ela dá conta de um tipo de cinema que vasculha processos sociais muito particulares daquele povo. O Marrocos ainda não conseguiu chegar a esse lugar com o cinema. Até hoje falam de nosso cinema como “cinema africano”, sem respeito às nossas peculiaridades, como se nossos filmes e os dos demais países da África fossem uma coisa só. Não são. Nossa riqueza continental está na diversidade.

Qual é o olhar que o seu cinema busca construir a partir do universo feminino?

Um olhar que vá além da burca, do sexismo. Não sou mulher, não ocupo este lugar de fala do feminino, mas eu me encanto pela coragem delas, por sua luta. As mulheres, nos meus filmes, são a representação poética da condição humana, sem alteridade de gênero. Elas são o epicentro de uma batalha humana contra a dor da opressão, seja o sexismo ou qualquer outra forma de opressão.

Seu cinema ganhou fama a partir da passagem de “A breach in the wall”, em Cannes, em 1977, como sendo uma mescla inusitada de fábula e de um naturalismo quase documental. Qual é o lugar do realismo na sua obra?

Eu venho do teatro, sou ator e diretor. O teatro me deu o poder da metáfora, da representação pela analogia poética, a percepção de que eu posso usar uma fantasia para representar angústias sociais. Essa experiência teatral fez com que eu desenvolvesse muito cuidado no trato com o realismo, pois ele pode se tornar uma forma de censura, algo que quer educar o espectador e não estimular sua imaginação. Eu não quero educar, quero trocar.