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Perto dos 50 anos de carreira, Moraes Moreira exerce a sua verve cordelista

José Peres -
Moraes Moreira mostrará músicas inéditas do novo álbum "Ser Tão", na apresentação desta noite
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Impressiona a busca pela excelência de Moraes Moreira. Aos 71 anos, o cantor e compositor se permitiu florescer nova verve artística, e, em relação à inesgotável paixão pela música, encontrou a fórmula de manter para sempre a chama acesa. O que o público pode conferir hoje, às 20h, no Blue Note, na Lagoa, onde o astro da MPB apresentará o show “Música e poesia”.

Prestes a completar 50 anos de carreira, Moraes exercerá sua faceta cordelista – ele, há mais de meia década imortal da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. “É tudo métrica, rima e oração”, explica. “Mergulhei fundo nisso, e hoje arrisco até versos alexandrinos”.

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Moraes Moreira mostrará músicas inéditas do novo álbum "Ser Tão", na apresentação desta noite (Foto: José Peres )

O gênero nele se escondia tipo vulcão adormecido. “Sempre tive em mim a essência dos cantadores, dos repentistas”. Fato comprovado quando revelou em cordel a história dos Novos Baianos – mítico grupo que o revelou, no final dos anos 1960. “Foram 966 versos, 161 estrofes. Estudei os rigores do cordel, mas entrei para quebrar paradigmas”. O show de hoje trará também declamações de poesias, entoadas entre os hits a ferro e fogo cravados no imaginário popular. “O público gosta. Me aplaudem mais do que em certas músicas”.

A participação especial do filho guitarrista, Davi Moraes, promete estridência ao clima acústico e intimista. “Aos três anos, ele me mostrou que era músico”. Seria aprovado com louvor num colégio de aplicação intensiva. “No Rock in Rio, em 1985, solou “Brasileirinho” tendo apenas 12 anos”.

Algumas obras de seu último trabalho, “Ser Tão” (lançado recentemente pela Discobertas) tocarão a plateia. Sem lançar desde 2012, resgatou as raízes da sua interiorana Ituaçu, micromunicípio a 470 km de Salvador, terra onde deu os primeiros chutes no chão da praça, iluminada por lampião, e também os acordes iniciais que o guiariam ao estrelato. “Aprendi sanfona tendo aula com o melhor sanfoneiro da região, que estava preso”.

Produtor de seus últimos discos e autor de três livros, garante um próximo, de poesia. “Guardo um baú cheio em casa”. Com sua história consolidada na discografia nacional, decidiu se esmerar como letrista. “A poesia ganhou protagonismo em meu trabalho. Hoje, é tão importante quanto a música”.

Antonio Carlos Moraes Pires iniciou carreira como, simplesmente, Moraes. “Moreira veio de uma corruptela louca, em 1975, quando me lancei solo”, recorda. “O empresário Guilherme Araújo me batizou. Assumi, gostei do equilíbrio”.

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O início da carreira de sucesso com os Novos Baianos (Foto: Reprodução)

Nascido numa cidade sem tevê e com cinco casas, se tanto, possuidoras de rádio, sua genética musical se formou diante dos alto-falantes que materializavam Nelson Gonçalves, Lamartine, Orlando Silva, Francisco Alves. Quis ser médico – ideia que, por sorte, desistiu logo. Mais precisamente, assim que dedilhou a introdução de “La bamba”, aos 16. A festa do seu interior, no entanto, se deu no ano seguinte: pela primeira vez, viu a imensidão do mar, em Salvador. Na capital, conheceu outro inesgotável. Com Tom Zé houve sincrônica sintonia. “Ele me deu aulas de violão e me apresentou a um poeta, engenheiro agrônomo, de Juazeiro”. Galvã ;o, futuro parceiro no big bang profissional.

“O movimento cultural na Bahia era forte”, lembra. “Tinha o cinema do Glauber, um teatro maravilhoso e a música do Caetano e do Gil”. Ainda assim, necessitava de vitrine maior. “Viemos para o Rio eu, Galvão e o Paulinho Boca de Cantor, em 1968, de ônibus”. Com visual “bicho-grilo”, não entende como foram tão “aliviados” pela repressão: “Davam dura na gente, mas nos liberavam”, surpreende-se. “Alegavam que éramos loucos, não tínhamos pinta de comunista”.

Graças a João Araújo, pai de Cazuza, gravaram pela RGE o primeiro disco. Colocou uma música no Festival da Canção da Record e, a minutos da apresentação, receberam a denominação que os enternizariam. “Um produtor não nos deixou entrar sem nome. Às pressas, berrou para o contra-regra: ‘Chama esses caras de ‘Novos Baianos’”.

Daí em diante, incorporaram Baby, Pepeu e Dadi aos locais onde viveram feito sociedade alternativa – uma cobertura na Rua Conde de Irajá, em Botafogo, seguida por um sítio em Vargem Grande. “Para sermos novos baianos, não bastava tocar juntos. Tínhamos que conviver”. Way of life que seduziu João Gilberto. “Pirei quando ele entrou na casa e começou a tocar na minha frente. Eu nem me atrevia em Bossa Nova, a gente era do rock. Me senti um miserável ao vê-lo ao vivo. Achei que nunca conseguiria ser artista, passei uma semana deprimido”.

Nas visitas seguintes, espertos, usaram a ansiedade a favor. Enquanto o mestre tocava, ele e Pepeu reparavam com atenção em dobro aquele mistério do planeta. Ao fim, dividia com Pepeu: ‘Roubei cinco acordes dele, e você?’ ‘Seis, Moraes!’”

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O cantor e o filho, Davi Moraes, no Rock in Rio (Foto: Reprodução)

O gênio excêntrico o chamava de “vaqueiro do som”, por Moraes ser “bem rústico, caipirão mesmo”. Visionário, pediu à turma para olhar para dentro de si. “Quando João Gilberto cantou ‘chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor’, foi um tapa, mudou tudo. Injetamos no samba da minha terra nossa energia rock n’ roll”. Um rico fruto germinaria. Considerado pela revista “Rolling Stones” nacional o melhor disco brasileiro de todos os tempos, “Acabou chorare” se tornaria lenda. “Apesar da vida louca, na profissão éramos sérios. Queríamos fazer história”.

Família crescendo, não deu para seguir aquela falta de projeto adiante. “Se duas pessoas morando junto dá problema, imagina vinte”, sorri. Fosse pouco, o pombo-correio se viu preso na gaiola das melodias. “Eu não fazia letras. Queria testar o que compunha sozinho, existir não como peça de engrenagem, mas com minha própria identidade”.

Recomeçou dizendo a si próprio: eu sou o Carnaval. Na Bahia, com Armandinho, sua vassourinha elétrica varreu multidões, a bordo do trio elétrico de Dodô e Osmar. Em seguida, no Recife, o frevo o pegou enquanto corria a barca. Com discos vendidos até no Japão, diz-se “patriota, mas não idiota”. “Nunca precisei de Lei Rouanet”, assegura. “Tive uma ou duas vezes, e em todas prestei conta até de agulha comprada”. Para ele, o Brasil tem conserto, não vem descendo a ladeira. “Na ditadura, era pior. Pegavam em casa, prendiam, torturavam e exilavam”.

Torcedor das cores vermelho e preta, pretinha, homenageou um projeto de ídolo vendido há pouco para a Itália: “Paquetá vai voltar, Paquetá vai embora, e eu não vejo a hora de Paquetá voltar”. Torcedor de sofá, recorda saudoso de sua “vida de jogador”: “Hoje tudo se reduz a streaming, mas era glamouroso ser ‘craque’ de gravadora, assinar por três anos, rodar o país com um séquito cuidando de tudo para nós”.

Hoje, é cada um por si; foi-se o tempo de viver de venda. “Tem de fazer show que chame gente”. Ainda cai na estrada: há promessa de novidades, ao fim do ano que vem, com os Novos Baianos.

Assim segue o ídolo. Como expôs o escritor Bráulio Tavares, “Se a Música Popular Brasileira fosse uma cidade, Moraes Moreira seria aquele caminhante que passa por todos os bairros, cruza todas as ruas, vira em todas as esquinas... e por onde anda se sente em casa”. Carga pesada de trabalho em várias frentes, nenhum apocalipse o impede de ao infinito circular: “Na cadência do samba, vou da criação à divulgação, fase a fase, sem parar.”

Feito um jovem septuagenário, disposição não lhe falta. Os fãs agradecem e a menina dança.

*Jornalista e escritor

Reprodução - O início da carreira de sucesso com os Novos Baianos
Reprodução - O cantor e o filho, Davi Moraes, no Rock in Rio