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Entrevista - cineasta Olivier Assayas: O populismo despreza o pensamento

Um dos cineastas franceses de maior prestígio na atualidade, Olivier Assayas é o mais festejado dos convidados internacionais do Festival do Rio, onde faz rir com Vidas duplas

Bruno Kaiuca -
Olivier Assayas
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Querido tanto nos rincões mais radicais do cinema autoral, onde se notabilizou com cults como “Irma Vep” (1996) e “Depois de maio” (melhor roteiro em Veneza, em 2012), quanto na indústria da televisão, em que é reverenciado pela minissérie “Carlos, o Chacal” (ganhadora do Globo de Ouro em 2011), o diretor francês Olivier Assayas é estrela mais reluzente (e inquieta) da constelação de realizadores estrangeiros convidadas pelo Festival do Rio. Ímã de risos por onde passa, “Vidas duplas” (“Doubles vies”), seu novo longa-metragem, vem atraindo aplausos calorosos dos espectadores cariocas: tem sessão na maratona cinéfila nesta sexta, às 17h10, no Estação NET Botafogo, e no domingo, às 17h20, no Estação NET Ipanema. Pautado num confronto entre o editor de livros Alain (Guillaume Canet) com os avanços tecnológicos do mercado livreiro (afoito por e-Books e blogs), o filme cria uma trama complementar, ligada também a conflitos sobre a transformação virtual das relações humanas, com a crise da atriz Selena (Juliette Binoche) com sua escravidão a séries de televisão. É um dos filmes mais elogiados de Assayas, que viu sua carreira galgar outro patamar de respeito após conquistar o prêmio de melhor diretor em Cannes, em 2016, com o filme de fantasma “Personal shopper”.

“Aquele longa era a minha ode ao papel estético do silêncio e o quanto a ausência de palavras pode simbolizar o horror em sociedades como a nossa, que não comportam mais os momentos de introspecção e reflexão”, diz o diretor parisiense de 63 anos, na sede do Festival do Rio, em Botafogo, onde bateu um papo com o produtor carioca (radicado em SP) Rodrigo Teixeira (de “Me chame pelo seu nome”) com quem tem um projeto para fazer.

Teixeira produz “Wasp network”, thriller com Penélope Cruz, Wagner Moura, Pedro Pascal e Edgar Ramirez e Gael García Bernal, baseado no livro “Os últimos soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais. O projeto revive a história da Rede Vespa, grupo de espiões a mando de Cuba incumbidos de vigiar redes anticastristas nos EUA.

 

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JORNAL DO BRASIL: Com “Vidas duplas”, você traz ao Festival do Rio um filme inédito sobre a cultura do livro, sobre mudanças da tecnologia digital no ato de ler, ao mesmo tempo em que se prepara para uma incursão na literatura brasileira, ao adaptar “Os últimos soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais. Como o projeto “Wasp network”, produzido por Rodrigo Teixeira e estrelado por Wagner Moura, encaixa-se na linha narrativa de sua obra?

OLIVIER ASSAYAS: Ele me oferece a chance de fazer um tipo de thriller que os americanos não seriam capazes de fazer nunca. Primeiro, pela chance de filmar em Cuba. Depois, pela análise geopolítica que espero fazer. E ainda pelo fato de o cinema feito Hollywood parecer perdido em fórmulas. Tem muito cineasta interessante lá, como por exemplo, a diretora Kelly Reichardt (conhecida aqui por “Movimentos noturnos”), cujo trabalho é muito interessante. E você tem Scorsese, que pode fazer um filme atrás do outro, e um mais impressionante do que o outro, pela grife que é. Mas existe lá a convenção do espetáculo.

“Espetáculo” talvez seja a palavra-bússola para entender um filme como “Vidas duplas”, pois ele parece transbordar a filosofia de Guy Debord (1931-1994), pensador parisiense defensor de uma ideia crítica de que a vida contemporânea viciou-se em relações sociais mediadas por imagens de fácil descarte? Onde entra Debord nos embates amorosos entre o editor de livros Alain (Guillaume Canet) e a atriz Selena (Juliette Binoche)?

Quando eu comecei a tomar nota das ideias em torno desses personagens, eu não imaginava que elas dariam em um filme e muito menos que eu adotaria uma linha cômica. Fui escrevendo, escrevendo e, uma hora, tinha material para um roteiro, para um script de muitas falas. Tem influência de Éric Rohmer, grande mestre da Nouvelle Vague nele, não apenas por essa estética de falatório, mas pelo fato de esse diretor ter feito uma experiência narrativa, chamada “A árvore, o prefeito e a mediateca”, em que a linguagem foi nascendo no processo da filmagem, num a pesquisa. Mas fora Rohmer, eu preciso de Debord, aliás, preciso dele sempre, por ele ter sido o maior pensador da contemporaneidade, a partir dos anos 1960. Ele me dá um objeto: a invisibilidade. Ao usar um casal de intelectuais para abordar dilemas como a produção dos e-Books e a hegemonia dos seriados na produção audiovisual, eu estou analisando como essa nossa sociedade, viciada em impressões rápidas e cada vez mais alheia à reflexão, lida com a ameaça de desaparição de rituais como a conversa olho no olho, sem um celular no meio.

Você foi um dos grandes críticos da “Cahiers du Cinéma”, conhecido por seu apoio aos filmes da Ásia. Diante desse debate sobre livro impresso, livro virtual, como fica, na prática, o hábito da leitura? Ainda se lê muito na França?

Sim, há muita gente lendo, mas o que me irrita nesse debate é o fato de haver um populismo político barateador que difunde um certo desprezo à intelectualidade, ao ritual de se conversar sobre aquilo que lemos. Refletir virou um verbo careta para uma sociedade que quer gratificações imediatas. Como isso temos uma massa cada vez mais deseducada de um lado e, do outro, uma massa que reage, armando-se de um sólido ferramental literário e ensaístico, mas se isola em seu saber e sua arrogância.

Isso se estende também ao cinema, nesta batalha hoje que a mídia alimenta entre blockbusters de um lado e “filmes de arte” do outro?

Deixa eu trazer uma situação da literatura para te responder. No início dos anos 1930, se você fosse a uma boa livraria de Paris, provavelmente encontraria algum exemplar original, da tiragem de 1857, de “As flores do mal”, o livro que fez a fama de Charles Baudelaire como poeta. Era até fácil de achar, não por um preciosismo dos livreiros, mas pelo fato de que mesmo um livro de poesia como aquele provavelmente não esgotou a tirarem inicial de 2 mil exemplares impressos. Na prática, nem 2 mil pessoas devem ter comprado o livro de Baudelaire, mas isso não impediu que seu nome corresse o mundo e criasse um legado universal. Aplique isso ao cinema: nem todo filme precisa ser um fenômeno de audiência para que marque época e se torne um objeto de estudo. Hoje, não se vê os filmes de Robert Bresson por aí, com facilidade. Mas entre os anos 1940 e 50, filmes como “As damas do Bois de Boulogne” e “Um condenado à morte escapou” atraíram multidões aos cinemas. Hoje, são filmes estudados como filosofia, por sua abordagem metafísica da vida. Mas, à sua época, havia neles algo de popular, algo de familiar, em que o público se reconhecia. O espectador das zonas mais populares sabia reconhecer os códigos de Bresson. Hoje, a cultura do espetáculo fácil tirou essa percepção dos códigos, ou melhor, tirou a nossa disposição de se abrir ao que vem paras as telas.

Sua experiência na TV, com a minissérie “Carlos, o Chacal” (2010), um marco da teledramaturgia, foi uma reação sua a essa perda dos códigos com o cinema?

Ali, eu precisava de financiamento para bancar um filme de cinco horas, com um anti-herói associado a valores negativos e um elenco de desconhecidos: a televisão me ofereceu recursos para fazê-lo. Pra mim, “Carlos” é um filme de cinco horas. Foi concebido assim. É o que Alfonso Cuarón fez agora com “ROMA”. Ele usa os recursos da TV para fazer algo que é o oposto do código televisivo. Mas duas das maiores experiências cinematográficas que eu já vi também foram por essa linha: “Fanny e Alexandre”, de Bergman, e “La maison des bois”, de Maurice Pialat. Todos os processos técnicos e tecnológicos podem conviver, desde que haja espectadores conscientes do que assistem. Não há necessidade de extinção, e sim de convivência. Só que eu vou sempre preferir ver “ROMA” na telona do cinema.

*Roteirista e crítico de cinema