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Londres cai no real: experiências e manifestos como 'Aquarela' e 'Fahrenheit 11/9' renovam a força do documentário

Divulgação -
Pàra "Aquarela", o russo Victor Kossakovsky filmou a força da água em locais que vão do congelado Lago Baikal, em seu país, a corredeiras da Venezeula e o litoral de Miami
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LONDRES - Endossado pelo Leão de Ouro recebido em Veneza, há cerca de um mês, e transformado na aposta mais quente para múltiplos categorias do Oscar 2019, “ROMA”, produção Netflix com a grife autoral de Alfonso Cuarón, entupiu cinemas ingleses no fim de semana inicial do BFI – London Film Festival, a maior vitrine audiovisual do Reino Unido, que, embora embevecida diante do memorialismo em preto & branco do cineasta mexicano, encontrou na produção documental foco de atenção igualmente potente. De um lado, a capital inglesa chorava de emoção com as situações melodramáticas usadas por Cuarón para reviver o México dos anos 1970, sob a ótica de uma faxineira e babá ameríndia; do outro lado, mais racional, Londres se deliciava com uma oferta diversificada de observações sobre o real, num menu de .docs fartíssimo. O mais aclamado é “Aquarela”, do russo Victor Kossakovsky: longa mais perto do ensaio poético (em prol da natureza) do que das convenções fílmicas mais comuns aos retratos da vida como ela é.

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Pàra "Aquarela", o russo Victor Kossakovsky filmou a força da água em locais que vão do congelado Lago Baikal, em seu país, a corredeiras da Venezeula e o litoral de Miami (Foto: Divulgação)

“Eu não faço cinema para fazer política, pois acredito na força que essa forma de arte tem como linguagem, para além das teses que possa levantar”, disse Kossakovsky, em papo com o JORNAL DO BRASIL, explicando como filmou tomadas arrebatadoras da força das águas do planeta, em locais diversos, do Lago Baikal da Rússia ao litoral de Miami, passando por corredeiras na Venezuela. “Imagem é a essência do cinema. É importante entender o que cada imagem tem a dizer num filme, pela cor, pela dimensão plástica. Um filme é um quebra-cabeças de sentidos”.

Exibido antes no Festival de Veneza, com enorme sucesso de público e crítico, “Aquarela” testemunha desde o deslocamento de placas de gelo até uma tempestade, retratando de formas inusitadas o fluxo hídrico seja da chuva, seja dos rios, lagos e mares para onde o cineasta mira sua câmera. A água vai sendo descontruída, a cada quadro, num efeito sensorial arrebatador. “No documentário, ao contrário do que se faz na ficção, a Natureza é quem guia o que fazemos. Não escolhi as pessoas que filmei: o roteiro aqui não foi escrito, a câmera foi me levando aos encontros, guiado pela água”, disse Kossakovsky.

Amparada numa mirada ecológica, “Aquarela” conseguiu fazer tanto barulho quanto o piquete em forma de filme “Fahrenheit 11/9”, no qual o polêmico Michael Moore põe o dedo na cara de Donald Trump – de forma figurada – apontando as falhas de suas gestão na Casa Branca. Nesta segunda, o festival londrino recebe outro documento sobre as falências morais dos EUA: “What you gonna do when the world’s on fire?”, que disputou com “ROMA” o Leão dourado de Veneza. Dirigido por um italiano (Roberto Minervini), que expõe mazelas da exclusão de cor nos Estados Unidos, o longa é um retrato da luta de jovens negros americanos para driblar a pobreza e a intolerância racial. O dinamismo de sua montagem amplifica a bruta realidade que documenta. Sua exibição no BFI é competitiva, na briga pelo prêmio de melhor longa documental.

Nessa seara, o filme mais falado do evento veio da Argentina: “Teatro de guerra”. Nele, Lola Arias revolve feridas ainda abertas da Guerra das Malvinas. Também há uma torcida organizada em prol da vitória do charmoso “L’époque”, de Matthieu Bareyre, sobre formas de militância política na vida noturna de uma Paris de muita miscigenação cultural. Entre os documentários do Reino Unido, o mais potente (em concurso) é “The plan that came from the bottom up”, de Steve Sprung. Nele, o cineasta revisita um plano econômico aplicado na Europa dos anos 1970 para evitar o desemprego em massa no Velho Mundo.

Entre os longas de ficção, em sessões hors-concours, que mais se destacaram em Londres no fim de semana, uma comédia alemã virou assunto nas muitas línguas que compõem a plateia do BFI – London Film Festival: “In the aisles”, de Thomas Stuber. À frente do elenco, está a “Audrey Hepburn da Alemanha”, a atriz Sandra Hüller, do cult “Toni Erdmann” (2016), que volta aqui numa agridoce história de amor.

Ela vive uma funcionária do setor de doces de um supermercado que acaba atraindo o desejo e o amor de um novo funcionário, o silencioso Christian, vivido por Franz Rogowski, o astro do momento em terras germânicas, que se abrem para uma novíssima fase de bom humor.

Dia 21, o Festival de Londres entrega seus troféus e encerra sua programação com um filme sobre a amizade entre O Gordo e O Magro: “Stan & Ollie”, de Jon S. Baird. Um dia antes de fechar a conta, o evento vai matar as saudades que os ingleses têm de Hector Babenco (1946-2016): “Pixote, a lei do mais fraco” (1981) será projetado na cidade em uma cópia nova, que vai estar também na Mostra de SP, em cartaz a partir deste fim de semana.

* Roteirista e crítico de cinema