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Conflito de classes

Um retrato de uma sociedade absurda e surreal

Jamie McCarthy/AFP -
Clara Linhart dirigiu o longa "Domingo" ao lado de Fellipe Barbosa
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BRASÍLIA - O longa “Domingo”, de Clara Linhart e Fellipe Barbosa, acompanha uma família disfuncional reunida para um churrasco no Sul do país, na véspera da posse do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. O cotidiano da família serve como reflexão daquele momento da história. Exibido no Festival de Veneza, na Mostra Horizontes, marca presença na Capital e não disputa a competição oficial.

“Todas as questões relacionadas à sociedade brasileira estão ali. Durante a exibição eu sentia risos pertinentes a situações que todos nós conhecemos”, afirmou Clara Linhart, após a exibição. ”A experiência de passar o filme aqui e em Veneza foi muito diferente. Porque tem a questão do filme ser muito falado, às vezes tem cinco, seis, sete ou oito personagens falando ao mesmo tempo e isso, com a legendagem, perde bastante”, acrescentou a diretora. “A sessão de Veneza foi muito mais fria. A percepção de um filme atravessa nossos corpos, nossas subjetividades múltiplas e aqui ainda tem o contexto político, quando o filme começou a ser escrito nunca imaginávamos que hoje o Lula estaria preso”, conta o diretor Felippe. Para evitar que fosse filmado tal e qual como foi escrito em 2005, ele diz que a optou-se ir reescrevendo o roteiro no set com a presença do roteirista Lucas Paradizzo. “Porque senão seria muito a reafirmação de uma opressão e hipocrisia. Todos nós, da equipe, queríamos reagir a esse roteiro, criar pequenas vinganças no fim e viradas para os personagens mais oprimidos. Uma preocupação nossa que tem muito a ver com as demandas do nosso tempo”, revela Fellipe.

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Clara Linhart dirigiu o longa "Domingo" ao lado de Fellipe Barbosa (Foto: Jamie McCarthy/AFP)

O diretor tem segurança e propriedade em sua fala. Seu longa mais conhecido é “Casa Grande (2014)” um retrato sobre a mudança social no país a partir de uma família burguesa falida, mas que tem o preconceito racial enraizado. “Domingo” volta ao tema elite contra empregados e se junta a uma leva de produções recentes que retratam com maestria o assunto: “Que horas ela volta (2015)”, “O som ao redor” (2012), “As boas maneiras (2017)” e “Domésticas (2012)”.

Reflexivo, mas leve e divertido, capaz de deixar aquele sorriso nervoso no rosto, “Domingo” se movimenta com a chegada da matriarca (Ítala Nandi) e seu filho caçula (Ismael Caneppele) na propriedade onde vive o filho mais velho, Nestor (Augusto Madeira), e sua mulher Bete (Camila Morgado). Sutilmente a trama vai virando um redemoinho de emoções. Relações que enaltecem a moral da família vão sendo deixadas de lado para traições, preconceitos, homofobias, embate social e uso de drogas. Enquanto anseios e apreensões abatem os corações e mentes daquelas pessoas ali reunidas, especialmente a matriarca preocupado com os privilégios que sua classe social pode perder. Também traz momentos curiosos como o medo de um empregado da família com a chegada dos “comunistas” ao poder.

“Fico muito feliz de, com 60 anos de profissão, poder ter feito esse filme da Clara e do Fellipe porque é de uma outra geração. A minha geração foi de Ruy Guerra, Joaquim Pedro, Leon. Então é ver um novo cinema novo surgindo e com uma eficácia que me impressionou no primeiro dia de filmagem”, falou a veterana Ítala Nandi, vencedora do prêmio Leila Diniz, lançado nesta edição do festival para destacar mulheres que contribuíram na trajetória do cinema.

Embora o filme tenha sido originado há mais de uma década, ele surge perfeito para o momento em que vivemos. A obra dialoga com a ansiedade pré-eleitoral, evocando medo ou esperança. “Talvez no mesmo lugar, mas sem dúvida cada vez mais decadentes. Se não conseguiram ser livres das suas neuroses, estão refletindo sobre isso”, declarou o roteirista Lucas sobre como veria, nos dias de hoje, aquela família.

Assistente de direção e jornalista