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O combativo diretor israelense Amos Gitai surpreende Veneza com filmes mais leves

Divulgação -
Amos Gitai é o maior nome do cinema de Israel
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Humor nunca foi o forte de Amos Gitai, um dos mais controversos realizadores da história do cinema, reconhecido por filmes como “Kedma” (2002) e “Free Zone” (2005) como o cronista número de Israel quando o assunto é o conflito com os palestinos – seu olhar crítico já irritou muitos, mas também encantou muita gente. Assim como sua veia cômica nunca foi exaltada, seu lado existencialista também não costuma ser muito reverenciado pelos críticos. Por esses dois pontos, sua passagem ontem pelo 75º Festival de Veneza, com um par de longas-metragens (ambos fora de competição) pode ser considerado um divisor de águas em sua prolífica carreira. Aos 67 anos, o cineasta – que, em 1973, foi ferido durante uma missão militar em um helicóptero, enquanto combatia na guerra do Yom Kippur – levou ao Lido a quase comédia (de tons documentais) “A tramway to Jerusalem” e o filme-poema “A letter to a friend in Gaza”. O primeiro, é uma bem-humorada crônica de costumes sobre confusões do dia a dia dos israelenses no trato com seus vizinhos da Palestina. O segundo é uma carta filmada com base em textos de Albert Camus, Amira Hass, Emile Habibi.

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Amos Gitai é o maior nome do cinema de Israel (Foto: Divulgação)

“Tenho preparado novos filmes que mostram Israel como uma grande lata de sardinha na qual, mesmo apertados entre si, os peixes parecem não ser capazes de encontrar harmonia entre suas diferenças, a fim de melhorar o espaço para todos. Há tempos, eu venho dizendo que a mídia acaba fundindo as diferentes questões políticas que dividem Israel como se fossem uma questão só, apenas ligada a intolerância. Penso que o cinema é um meio modesto, mas necessário, de viabilizar um outro olhar para espaços que estão sufocados pela cobertura da imprensa, nas redes sociais”, disse o cineasta ao JB, em recente entrevista, complementando sua visão de mundo no Lido com um pleito sobre liberdade de expressão. “A maior homenagem que um artista pode fazer para o mundo contemporâneo é ser crítico a ele e, no campo do audiovisual, não confundir cinema com propaganda”.

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"A tramway to Jerusalem" é um sopro de bom humor na linhagem política de Amos Gitai (Foto: Divulgação)

Apesar de ser criticado por seu discurso pautado mais pela retórica do que pela dialética, Gitai surpreendeu Veneza por trazer narrativas mais leves. “A tramway to Jerusalem” impressionou pela fluidez de sua montagem ao retratar o cotidiano de Israel para além da tensão política. Já “A letter to a friend in Gaza” é marcado por uma delicadeza de tom filosófica numa discussão sobre angústia. “O individualismo espatifou as utopias”, disse o diretor, que criticou a política cultural de seu país por apostar em discursos de propaganda em nome de ideais de direita.

Na competição, o último longa a sacolejar os brios de Veneza, candidatando-se a favorito na luta pelo prêmio de direção foi o drama de época de CEP húngaro “Sunset”, com o olhar do diretor László Nemes sobre os eventos que antecederam a I Guerra Mundial. Revelado em Cannes, em 2015, com “O filho de Saul”, pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Nemes repete a mesma estrutura convulsiva de câmera de seu sucesso anterior na trama sobre uma jovem em busca do paradeiro de sua família em meio a uma tragédia global anunciada nas trincheiras da Europa.

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"Letter to a friend in Gaza" (Foto: Divulgação)

Ontem, Veneza recebeu, uma vez mais, uma de suas “crias” mais queridas, o artista plástico e cineasta Julian Schnabel, que brilhou lá em 2000 com “Antes do anoitecer”, mas acabou saindo do Lido chamuscado, em 2010, com as críticas negativas a seu último longa, “Miral”. Fã declarado de Glauber Rocha e amigo de Hector Babenco, Schnabel regressa ao evento, de novo na briga pelo Leão de Ouro, com um ensaio poético sobre a arte e a vida de Vincent Van Gogh: “At Eternity’s Gate”. Willem Dafoe vive o pintor. Há quem diga que o diretor - indicado ao Oscar há dez anos pelo cult “O escafandro e a borboleta” - criou a narrativa com Dafoe inspirado na dramaturgia dos quadros mais ilustres do mestre da pintura, driblando as convenções das cinebiografias.

“Tenho a sensação de que a minha opção por um cinema autoral mais radical leva muita gente a me escalar para viver artistas de temperamento marcado pela loucura ou pela intensidade, como foi Pier Paolo Pasolini, a quem interpretei sob a direção de Abel Ferrara, e, agora, Van Gogh”, disse Dafoe no último Festival de Berlim, ao ganhar um Urso de Ouro honorário, em um intervalo da produção do longa de Schnabel.

Há quem aposte em prêmios para o astro, aclamado nos anos 1980 com “Platoon”. Até agora, fora Dafoe, o ator com o melhor desempenho foi John C. Reilly, no faroeste “The Sisters brothers”, de Jacques Audiard. Entre as atrizes, há uma torcida por Tilda Swinton na composição soturna (porém maternal) de Madame Blanc, uma coreógrafa cercada por bruxas em “Suspiria”. De tudo o que já se viu na terra das gôndolas até aqui, “ROMA”, de Alfonso Cuarón, segue na dianteira como a aposta principal para o Leão de 2018, com seu retrato em P&B da classe média do México nos anos 1970.

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At eternitys gate", onde Willem Dafoe interpreta Van Gogh (Foto: Divulgação)

Curiosamente, é um documentário - ave rara em um mar de ficções - que se impõe como seu maior rival: “What you gonna do when the world’s on fire?”, do italiano radicado nos EUA Roberto Minervini. O longa é um retrato da luta de jovens negros americanos, da região sul de seu país, para driblar a pobreza e a intolerância racial em tempos de Trump na Casa Branca. O dinamismo de sua montagem amplifica a bruta realidade de afro-americanos segregados pela escassez de trabalho. A última vez que um documentário venceu Veneza foi há cinco anos, quando Bernardo Bertolucci, então à frente do júri, confiou o Leão a “Sacro GRA”, de Gianfranco Rosi.

Hoje, a disputa abre espaço para três novos longas: a coprodução Argentina × México “Acusada”, de Gonzalo Tobal; o drama musical made in USA “Vox Lux”, de Brady Corbet; e o thriller alemão “Never look away”, de Florian Henckel von Donnersmarck. Sábado serão conhecidos os ganhadores, com a exibição do thriller “Driven”, de Nick Hamm, como atração de encerramento.

* Especial para o JB. Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - "A tramway to Jerusalem" é um sopro de bom humor na linhagem política de Amos Gitai
Divulgação - "Letter to a friend in Gaza"
Divulgação - At eternitys gate", onde Willem Dafoe interpreta Van Gogh
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