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Multipremiado em Portugal, "Não se pode morar nos olhos de um gato" é publicado no Brasil

Entrevista com Ana Margarida de Carvalho

Adriana Morais -
A portuguesa Ana Margarida De Carvalho
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Desde agosto, leitores brasileiros podem conhecer em edição nacional “Não se pode morar nos olhos”, segundo romance da portuguesa Ana Margarida De Carvalho (Editora Dublinense, R$ 47). A obra acumula uma porção de honrarias no país de origem, incluindo o Grande Prêmio da Associação Portuguesa de Escritores, o título de melhor livro de 2016 do jornal Público e uma indicação ao Prêmio Oceanos.


Na trama, após o naufrágio de um navio negreiro no final do século XIX, oito vidas se veem isoladas nas areias de uma praia do nordeste brasileiro que só existe na maré baixa: um criado, um escravo, um capataz, um padre, um estudante, um bebê, uma fidalga e a filha. Junto com a tarefa da sobrevivência, resta lidar com o passado e a história de cada um, incontroláveis como o mar.


Para meditar sobre a alteridade, a escritora efetua um radical exercício de experimentação da língua portuguesa, com vocabulário suntuoso, imagens insólitas e um fôlego e um ritmo possantes, em uma notável aproximação entre a prosa e a poesia.

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A portuguesa Ana Margarida De Carvalho (Foto: Adriana Morais)

P: A senhora vem do jornalismo, caracterizado pela concisão, objetividade e frieza. Em seu romance, chamam a atenção o estilo torrencial, a exuberância das imagens e a variedade vocabular. Quais são as principais diferenças entre escrever um texto jornalístico e um de ficção?


Penso que a diferença substancial entre jornalismo e ficção não está na forma. É claro que a escrita que usamos na literatura pode ser mais conotativa e a do jornalismo mais denotativa, em que predomina o objetivo de passar para o leitor um acontecimento. Temos então de ter em conta uma coisa terrível que é a eficácia, a ditadura da utilidade. Quando fazemos literatura, isto pode ser posto um pouco de lado. Claro que é muito importante para mim que o leitor me acompanhe ao longo da narrativa, através de uma escrita um pouco labiríntica e torrencial, que apanhe certas pistas e referências, mesmo que de forma fragmentária e com um ritmo pouco apressado de leitura. Mas se, no jornalismo, o pacto que fazemos com o leitor é o da verdade (seja lá o que isso for), na ficção, o único pacto que temos é o da verossimilhança. Por mais absurdos e sem sentido que possam parecer os acontecimentos ou as personagens, eles têm de manter uma lógica de coerência interna, dentro do universo ficcional que eu própria criei. Como naquela célebre observação de Tchecov: se colocas uma espingarda no primeiro ato, terás de a usar no segundo ou no terceiro.

Como foi realizar essa transição?


Não foi difícil para mim, uma vez que durante muito anos assinei crônicas e crítica de cinema, gêneros intermediários, com uma grande carga de subjetividade e de liberdade. Um poeta português, Manuel António Pina, dizia que crônicas eram jornalismo com saudades de literatura e literatura com remorsos de ser jornalismo. Ademais, sempre tive um pé na ficção e já tinha escrito roteiros de cinema e uma peça de teatro, só que estava muito ocupada a levar o jornalismo a sério, quando ele mesmo não queria ser levado a sério. De certa maneira, a crise no jornalismo, que se infantilizou, se tornou menos exigente e criativo, deixou-me mais tempo livre.

Em termos de estilo, quando foi escrever o livro, já sabia o caminho que seguiria?


Penso que o que dita a forma é o conteúdo. Ou seja, a história e as personagens. No caso deste livro, quase todo ele é passado por detrás dos olhos das personagens, porque vemos sempre em função daquilo que somos, através do pensamento… Logo o discurso errático, tumultuoso, às vezes convulso, outras repetitivo. Porque nós não pensamos de forma sequencial e lógica. O nosso pensamento flui, dispersa-se, concentra-se, volta para trás…

Qual é a sua rotina de escrita?


A minha rotina é não ter rotina alguma. Faço mil coisas ao mesmo tempo. Regresso e abandono um romance, leio vários livros ao mesmo tempo, ouço música, deixo os meus apontamentos espalhados pelo chão e acredito que do meu caos pode surgir algo criativo. Às vezes acontece-me.

Reescreve as obras várias vezes?


Nunca me dou por satisfeita, na verdade. Por isso nunca releio os meus livros depois de impressos. Tenha a sensação de que tudo poderia estar melhor, as palavras mais bem escolhidas, as frases com mais ritmo… Por isso me é tão penosa a fase da revisão. Mas há um certo ponto de exaustão em que temos de aprender a deixar ir...

Em termos de inspiração, como trabalha? Guarda cadernos com notas, pensa muito antes no que escreverá, ou apenas quando se senta lhe ocorrem as ideias?


O ideal é partir para o computador já com alguma ideia. Mas às vezes há prazos e pressões. Eu trabalho muito bem sob pressão porque tenho 25 anos de jornalismo, com prazos e deadlines apertados. E também é verdade que o que mais serve de inspiração à frase seguinte é a frase anterior. As palavras são muito inspiradoras para mim.

Seu livro, em larga medida, trata da experiência da alteridade. Pensa que a literatura pode nos ensinar algo sobre a convivência com a diferença?


Na minha opinião a literatura não tem de ter uma atitude messiânica ou uma função didática de ensinar coisas. Escrevo sobre o que me incomoda, sobre o que me perturba, ou o que me tira o ar… e a incapacidade do ser humano de se colocar na pele do outro, daquele que se encontra em posição desfavorecida (digamos assim) é terrível. Está na base dos sentimentos mais horríveis que possamos imaginar: o racismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, a intolerância religiosa ou intelectual…


Temas do presente, portanto,


Quando me perguntam se este é um romance histórico, eu tento sacudir esse rótulo com todas as minhas forças. Este é um romance de agora. É claro que o situei no século XIX para que possamos encontrar pedaços de presente nesse passado. E encontrar esses referenciais retrógrados, sentimentos hediondos que julgávamos abolidos e extintos, aqui, em pleno século XXI, é perturbante. Nesse sentido é um livro híbrido, que se situa algures entre o passado e o presente das personagens, entre a vigília e o sono, e entre o mar e a terra – que é a tal praia intermitente, que é submergida na maré cheia. Depois, há uma tênue linha de existência que é a beira-mar, onde tudo existe e não existe. A areia simboliza todos os pedaços, sedimentos, toda a tralha sentimental que carregamos pela vida fora, todo entulho, espuma e células mortas. Que acolhe as pegadas que vamos deixando em cima do entulho caótico de sempre.

Como define o tema do romance?


Gosto de pensar no livro como um romance sobre a pele. Não só sobre a melanina, pele branca e pele negra, porque se fala de racismo no seu expoente mais atroz (a escravatura), mas também da pele que é esta cápsula que nos separa dos outros. No final, todas as personagens acabam encostadas pele com pele, todas nuas (despidas literalmente, das suas roupas, e também das várias peles sociais), todas com a mesma cor e o mesmo cheiro.

Por que situou o livro em uma praia brasileira do século XIX?


Porque para o bem e para o mal temos um pedaço de história em comum, e ainda há muitos temas tabus que devem ser encarados de frente, sem receios. Essas praias intermitentes existem em muitos locais do planeta. Eu própria tenho uma recordação de ter ficado quase encurralada numa praia dessas, no sul de Portugal, ao ser surpreendida pela maré que começou a encher de repente, e de ter de correr com as ondas a me baterem nas pernas contras as rochas, até alcançar um lugar seguro. É uma sensação muito claustrofóbica. Há uma praia, no estuário do Tejo, na margem oposta a Lisboa, que corresponde à que eu imaginava. Na maré baixa aparece a areia e entre ela pequenos pontos borbulhantes de uma nascente de água doce. Chamam-se olhos de água. E dantes as mulheres faziam covas na areia, até formarem pequenos lagos, e iam lavar a roupa nessa água limpa e doce que brotava da areia. Sempre achei uma imagem muito bonita.


Seu livro recebeu grande aclamação crítica. O reconhecimento é uma preocupação para a senhora? Importa-se com honrarias como prêmios?

Importo-me, pois. Primeiro porque são normalmente prêmios dados por júris compostos por escritores e académicos por quem eu tenho a maior admiração. Por isso, sinto-me muito grata e lisonjeada. Por outro lado, esses prêmios correspondem quase que a uma segunda vida que se dá ao livro. Em Portugal, os livros têm um prazo de validade menor do que a de um iogurte. Geralmente quando saem ficam uma semana ou duas em lugares visíveis nas livrarias e depois são remetidos para os armazéns e para o esquecimento. Quando acontecem prêmios, esses livros ganham novamente visibilidade.

Seu livro começa em uma tempestade, narrado por uma santa de pau. Alguns leitores podem se intimidar pela fragmentação e desorientação da descrição. Sente que é preciso desafiar o leitor?


Sim, é verdade, mas eu não tenho a arrogância de achar que um leitor se deixa intimidar, ou que não consegue acompanhar uma prosa mais exigente e que precisa de algum tempo de leitura, e até de releitura. Não imagino um leitor débil e renitente. Isso seria uma arrogância muito feia da minha parte. Penso que o leitor eventualmente pode sentir o mesmo esforço a ler que eu senti a escrever. Sim, é muito desafiante imaginar como pode uma santa de pau falar, que palavras ela usa, usa arcaísmos, preces, orações benignas ou malignas… O livro é tanto de quem escreve como de quem o lê. Todas as possibilidades de interpretação são possíveis. Com algumas posso não concordar, mas tendencialmente as construções dos leitores são melhores do que aquelas em que eu pensei quando escrevi.

Conhece autores da literatura brasileira? Quais? Poderia comentar um pouco sobre eles?


Sim, conheço alguns. Até cheguei a pensar que se Jorge Amado não tinha ganho o Nobel, ele poderia ser entregue ao poeta Manoel de Barros, que eu venero. Infelizmente morreu entretanto. Também João Ubaldo, que eu tive a honra de entrevistar. Randu Nassar, que adoro. Chico Buarque, suas canções e dramaturgias. Machado de Assis também é um dos meus escritores preferidos. E o Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa, será sempre, para mim, uma espécie de Bíblia.