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1968, o ano que ainda nem começou

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Estar em Lisboa nesses dias tem sido agradável e revelador. Um lugar que pulsa, que se diverte, que se manifesta e que me traz lembranças fortes de uma época onde a transformação era a palavra de ordem.
Quando entrei na exposição “1968: O Fogo das Ideias” no Museu Coleção Berardo, aqui nesta mesma Lisboa, dei de cara com duas fotos emblemáticas do “Jornal do Brasil”, ambas de Evandro Teixeira, da histórica Passeata dos 100 mil com cores aplicadas sobre elas. Marcelo Brodsky, argentino, artista plástico e ativista dos direitos humanos, ele mesmo vítima da perseguição dos militares na ditadura argentina, é o responsável pelas intervenções gráficas nessas fotos e nas outras que giram em torno das manifestações no mundo no ano de 1968.
Foi uma viagem não só pela beleza das fotos, mas pela lembrança do que estava retratado ali. A juventude nas ruas em Roma, Coimbra, Bruxelas, Paris, Bogotá, Rio de Janeiro, Praga, Buenos Aires e outras cidades. Todas ardendo nas ideias de resistência ou transformação e, quase todas, sufocados em seguida pelos regimes autoritários.
1968 foi realmente um ano que não terminou porque, talvez, ainda nem tenha começado de fato. A real transformação que se delineava na época era resultado de um período onde o problema social, os padrões de comportamento e a juventude não cabiam mais em si. Isso sempre incomodou o status quo. Ontem incomodava, hoje incomoda. Estamos sempre à beira de uma transformação que idealmente deveria acontecer, mas não acontece como gostaríamos. No Brasil, o ano terminou com o AI-5 e o endurecimento da ditadura. Em Praga, com a invasão soviética, em Paris, com a batalha nas ruas e por aí vamos. De lá pra cá, muita coisa mudou. Talvez tenhamos até melhorado, mas a aflição e a inquietação da juventude permanecem.
Essa inquietação deve ser um movimento contínuo, uma pulsação que não diminui, um “rock ‘n’ roll” que embala e que transforma o velho no novo seja ele qual for. Hoje quando os jovens vão para as ruas, os anseios talvez sejam outros. São outros tempos, mas esse é o papel de todos nós e especialmente dos jovens. Ir para as ruas. Estamos bem longe do “É proibido proibir” de Paris. Estamos muito mais longe do amor livre das comunidades hippies e estamos realmente muito distantes de uma realidade social mais justa. Mas estamos nas ruas.
As mulheres carregavam, como na foto da passeata, a transformação e hoje continuam gritando que por cima delas ninguém passará. Acredito e conto com essa força. 1968 é uma ideia que fica. Um grito agudo e afinado que mantém todos acordados. Se, por acaso, esqueceram procurem saber, vejam nos livros, entrem no Google. 1968 é um estado de espírito que reforça a ideia transformadora da juventude, que une todos aqueles que ainda acreditam no sonho mesmo que esse sonho seja só uma lembrança distante e inatingível. Mas não podemos deixar de sonhar. Precisamos olhar no rosto dessas pessoas fotografadas em 1968 e manter a lealdade a elas, ao que elas queriam, ao protesto, à demonstração de força e à união.
Lembrei das ruas de 1968 agora em Lisboa no dia da manifestação das mulheres. Foi um ato contido, pacífico e emocionante. Todos gritando, cantando e dançando, defendendo uma ideia, ou melhor, protestando contra uma ideia nefasta, um caminho perigoso que nos ameaça. Bom ver o pessoal na rua e lembrar que todos nós estivemos lá, da Invasão da reitoria à Passeata dos 100 mil passando pelas Diretas-Já, pelas confusas manifestações de 2013 e chegando aos atos de hoje.
Que as forças repressoras se mantenham inertes e que o poder transformador dessa juventude que desde 1968 está nas ruas nos oriente para o futuro, mesmo que esse futuro esteja nu e cru, todo para ser construído. Melhor assim.