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Pela chaminé ou pela Porta dos Fundos

Netflix/Divulgação -
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Assisti ao especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos, esse mesmo que está gerando grande polêmica, pois, na visão de alguns cristãos, ele seria ofensivo a sua fé por retratar um Cristo gay. Enquanto assistia ao especial, me peguei pensando em uma outra polêmica natalina de peso, embora bem menos conhecida: o suplício de Papai Noel. Esse é o nome de um ensaio do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que analisa um episódio histórico no mínimo curioso.

Macaque in the trees
. (Foto: Netflix/Divulgação)

Nas festas de Natal de 1951 na França, Papai Noel foi enforcado e depois queimado em pleno dia 24 de dezembro, no átrio da Catedral de Dijon, diante de 250 crianças obrigadas a assistirem ao auto de fé. Tudo feito, é claro, com o aval da igreja e simpatizantes locais, que viam, na figura de Noel, um usurpador e herege, acusado de paganizar a festa cristã e roubar a cena de seu grande protagonista: Cristo. No comunicado distribuído após o holocausto de Noel lia-se: “Para nós, cristãos, o Natal deve continuar a ser o festejo que comemora o nascimento do Salvador”. A postura do clero de Dijon sofreu críticas severas à época. E, ao que se saiba, Papai Noel não foi martirizado daquela data em diante.

Papai Noel era visto, então, na França, como um intruso, que tinha diretamente a ver com a crescente hegemonia cultural norte-americana no pós guerra. Diz Lévi-Strauss: “Papai Noel não é um ser mítico, pois não há nenhum mito que dê conta da sua origem e suas funções; tampouco é um personagem lendário, visto que não há nenhuma narrativa semi-histórica ligada a ele”. A sua residência na Groelândia, ao que parece, tem mais a ver com a presença de tropas norte-americanas na Islândia e na Groelândia durante a segunda guerra, do que com um mito de origem ancestral. Papai Noel seria, então, uma espécie de “divindade etária”; o que o diferenciaria de uma verdadeira divindade seria o fato de que apenas as crianças creem nele, ao passo que os adultos, que o inventaram, não.

A função original de Papai Noel seria, como em todo rito de passagem, a de manter um certo controle sobre o comportamento das crianças. As boazinhas e obedientes seriam presenteadas e as desobedientes e rebeldes seriam castigadas e ignoradas pelo “bom velhinho" na hora de distribuir os presentes.

Levi-Strauss esforça-se por demonstrar que a influência dos EUA é grande, mas não explicaria tudo. Ainda bem. Ele frisa que a comemoração do Natal, com as características que conhecemos, é moderna, mas repousa sobre um leito muito profundo do paganismo. Papai Noel seria o resultado da fusão sincrética de várias imagens: Santa Claus, O Abade Liesse (o bispo-menino), São Nicolau, e, é claro, não se pode deixar de ligá-lo às Saturnalias romanas, festivais pagãos em honra a Saturno, o Deus que presidia as colheitas abundantes e a passagem das estações. Numa sociedade agrária, não é difícil imaginar a importância de reverenciar Saturno. As festas eram celebradas a partir do 17 de dezembro e terminavam justamente no dia 24 de dezembro.

Nestas festas as casas eram decoradas com folhagens verdes e havia troca de presentes. Os presentes eram as sigillaria, miniaturas em terracota ou prata e velas de cera, representando a luz na escuridão, algo bem mais simbólico do que os presentes modernos. Também ocorria a abolição temporária das distâncias entre ricos e pobres, senhores e servos (que seria a base para o Carnaval moderno). Nesses períodos de festas pagãs havia, é claro, toda sorte de excessos e abusos, especialmente dos mais jovens: agressões, bebedeiras, estupros e até mesmo assassinatos.

Para a psicologia junguiana essa fusão de imagens que resulta em Papai Noel é um fato psíquico bastante arcaico, um arquétipo. Um arquétipo resiste no tempo, porque atende a uma necessidade humana primordial, ainda que para sobreviver precise sofrer uma série de adaptações culturais. No caso, trata-se de um arquétipo da abundância, assim como Saturno, e da bondade, assim como Cristo. Um arquétipo que marca a transição de um ano a outro, assim como se vê nas Saturnálias; mesmo que tenhamos deixado de ser uma sociedade agrária, o pinheiro continua habitando os lares, mesmo onde ele é uma árvore estranha.

Parece que a apropriação comercial do Papai Noel, por um lado, enfraquece o simbolismo, enquanto, por outro lado, atua no sentido de manter o mito vivo no imaginário social. Fato bastante conhecido é que feições e cores pelas quais o conhecemos hoje remetem aos anúncios da Coca-Cola da década de 20. Ainda que um dos marcadores culturais para o fim da tenra infância seja exatamente deixar de acreditar em Papai Noel, os adultos seguem reforçando o mito - talvez porque, tendo eles um dia experimentado a magia dessa crença, sintam um impulso nostálgico irresistível que a perda de um mito benfazejo desperta.

Como se vê, Papai Noel é um intruso pagão numa feta cristã, que entra pelas chaminés inexistentes dos lares brasileiros e tem a sorte de ser apenas uma vez supliciado pelos cristãos, que, aliás, têm um grande acervo de suplícios em sua história. Estima-se que durante a o período inquisitório cerca de 150 mil pessoas foram julgadas pelo tribunal da inquisição, das quais cerca de três mil foram assassinadas. Dentre os mais célebres casos de perseguição religiosa pela igreja estão Galileu Galilei, condenado à fogueira, que conseguiu escapar negando suas descobertas, dentre as quais a de que a terra girava em torno do sol e não ao contrário, e Giordano Bruno, que morreu supliciado, e, agora Papai Noel.

A inquisição criou, em 1559, também o Index Librorum Prohibitorum, ou o Índice de Livros Proibidos; ao longo dos anos, muitos autores foram incluídos no índice: Nicolau Maquiavel, Voltaire, Erasmo de Roterdã, John Locke, Berkeley, Denis Diderot, Blaise Pascal, Thomas Hobbes, René Descartes, Rousseau, Montesquieu, David Hume e Immanuel Kant. No Brasil, o filme considerado uma releitura moderna do arquétipo de Maria, "Je Vous Salue Marie", de Jean Luc-Godard, provocou grande anvoroço entre a comunidade cristã e acabou censurado pelo governo Sarney, entrando, assim, para o Index Librorum Prohibitorum Brasilis.

Agora, o especial de Natal do Porta dos Fundos está ameaçado de fazer parte da seleta lista do Index Prohibitorum, da qual, num dia longínquo na França, também fez parte Papai Noel.

Nietzche dizia que não conseguia acreditar em um Deus que não soubesse dançar. Talvez me acalente a ideia de um Deus que, além de dançar, consiga rir e se divertir com suas criaturas; um Deus bondoso, ou, quem sabe, menos carrancudo que os mais dedicados de seus fiéis.

Aos poucos, Papai Noel deixou de ser um agente disciplinar do comportamento infantil para se transformar em um agente mágico do brincar. Que neste Natal possamos brincar mais, sorrir mais e perseguir menos. Que esse espírito de congraçamento possa entrar pela chaminé, ou pela porta dos fundos, tanto faz. Papai Noel agradece.

Feliz Natal para todos!