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Do Feitiço do Tempo a Blade Runner: diários de um mundo extremo

Cairomoon - Pixabay -
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Uma das passagens que mais me marcaram na época em que li pela primeira vez “A Era dos Extremos” do historiador inglês Eric Hobsbawm, não foi um nenhum grande conceito ou revelação histórica, foi algo mais banal, quase imperceptível: Hobsbawm mostra-se atordoado ao constatar que o jovem do final do século XX (a obra é de 1994) estaria vivendo numa espécie de presente contínuo, sem a percepção dos fios que nos conectam às gerações passadas, elos fundamentais para conferir sentido ao vínculo social entre as pessoas. O velho historiador considerava a "destruição do passado" como um dos fenômenos mais lúgubres do final do século XX.

Penso num mundo em que o passado foi destruído como o "dia da marmota" vivido por Bill Murray em “O Feitiço do Tempo”. No filme, Murray é um repórter que deve cobrir um evento completamente idiota: a primeira aparição das marmotas no início da primavera. Ele faz isso há anos e não aguenta mais. Acaba morrendo acidentalmente, e, para sua surpresa, renasce no dia seguinte: inacreditavelmente, o dia que recomeça é o dia da marmota. Ele descobre que pode morrer muitas vezes que ainda assim estará condenado a ressuscitar e a cobrir o dia da marmota por toda a eternidade. Um tédio: é uma espécie de Sísifo sem pedra. Em "O Feitiço do Tempo" o passado não tem importância, e quando o passado se torna irrelevante, somos condenados a nos repetir no presente, acreditando que o que estamos vivendo é algo totalmente inédito.

Macaque in the trees
(Foto: Cairomoon - Pixabay)

No feitiço do tempo do início do século XXI, dois extremos se evidenciam: entre os membros do jet set global (Washington, Wall Street, Vale do Silício e suas cópias em cada país), o que parece emergir é um coquetel que inclui escapismo, consumismo, individualismo exacerbado, angústia, hedonismo, sensação de poder sem limites, excesso de álcool, ansiolíticos, bolsas de marca, drogas, carros possantes e antidepressivos, mas sobretudo, uma baixíssima conexão afetiva com o mundo social ao redor. Nesse mundo, o "outro" se torna um incômodo desagradável. Por sorte a tecnologia e algum algoritmo colocará o "outro" a distância segura e controlável.

No outro extremo do balcão, está "o outro". Especialmente nos grandes centros urbanos, esse outro é um grande contingente de "barrados no baile": a grande massa que vem sendo varrida dos empregos formais e transformada em "empreendedores de plataformas" (Uber, Rappi, Cabify entre outros), terceirizados ou freelancers compulsórios, entre eles, pessoas com grande talento e anos de formação, que subitamente estão vendo suas posições desaparecerem bem a sua frente. Um bom filme para notar a transformação de uma pessoa em “outro" é "Eu, Daniel Blake". Aqui um coquetel bem mais amargo é colocado sobre a mesa: incerteza, indignação, desamparo, ansiedade, mas sobretudo, uma raiva crescente e compreensível contra "tudo o que está aí".

O problema é que "tudo o que está aí" é um objeto difuso. Todo objeto difuso é um disparador de ansiedade. É preciso que esse objeto difuso ganhe materialidade para que a ansiedade se transforme em medo concreto. O medo é o maior impulsionador da destrutividade humana. É preciso que se encontre os "inimigos" certos para transformar ansiedade em medo e medo em ódio. Pode ser Saddam Hussein e suas armas atômicas nunca encontradas, os judeus e os ciganos na Alemanha nazista, os russos na guerra fria, os ambientalistas e seu aquecimento global de araque, os cientistas que insistem que a Terra não é plana, os árabes sempre prontos a atacar pelas costas, os chineses, os gays destruidores dos valores morais e, quando escasseiam os culpados, sempre há os alienígenas. Enfim, qualquer grupo que encarne o mal e que eu possa odiar sem ter que pensar muito. As lições do século XX mostram que os "inimigos" em geral são construídos com esse propósito bem definido. O medo desperta o primitivo em nós e ódio nos torna facilmente manipuláveis.

Hobsbawm, um homem cuja história de vida coincide com as duas grandes guerras mundiais (nasceu em Alexandria em 1917 e morreu aos 95 anos em 2012), mostra-se visivelmente estarrecido ao ser abordado por um jovem universitário norte-americano querendo saber se o fato de ele se referir a uma segunda guerra mundial significaria que teria havido uma primeira. Olhando em retrospectiva, essa pergunta já indicava que alguma coisa muito séria pairava no ar no final do século XX. Para um historiador de sua envergadura, era inadmissível que justamente a memória histórica estivesse sob ameaça no final de um século que havia experimentado as maiores atrocidades que se têm notícia no ocidente. Nunca o título de um livro foi tão premonitório.

Mal sabia o velho historiador que os extremos se aprofundariam no início do século XXI, e que a memória coletiva passaria por um lapso tão brutal, que nos veríamos diante de questões que pareciam sepultadas desde o século XVIII. Era de se supor também que as experiências vividas com suficiente tragédia no século XX fossem traumáticas o bastante para não serem sequer cogitadas no século XXI. Não é o que parece. Sem consciência do passado, o futuro que se apresenta é uma mistura de “Feitiço do Tempo” e "Blade Runner”.

Tanto Jung quanto Freud encaravam a civilização como uma finíssima camada, extremamente frágil, que poderia facilmente ser rompida a qualquer momento pela irrupção do homem primitivo que nos habita. A civilização para Freud, era o freio necessário à explosão de agressividade inata do homem primitivo que nos habita. Na psicologia profunda, testemunhamos com frequência este primitivo rondando a todo tempo, na busca de brechas para se manifestar.

A consciência, tanto no nível individual quanto coletivo é a matéria prima que nos conecta socialmente e nos ajuda a nos libertar do "feitiço do tempo", a desistir de guerrear inimigos imaginários e a poder a imaginar e construir novos futuros possíveis. Ampliar a consciência acerca de nossos complexos individuais e coletivos é o que nos impede de sermos condenados a um dia da marmota sem fim.

Hobsbawm dizia que a função dos historiadores é lembrar o que a sociedade faz de tudo para fingir que nunca aconteceu. É uma profissão incômoda e necessária. Nunca é demais lembrar que os extremos se parecem mais entre si do que gostariam de acreditar. Os extremos se tocam nas pontas.

Flávio Cordeiro é Psicólogo e Psicoterapeuta

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