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A solidão dos conectados

Grae Dickason/Pixabay -
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Herman Melville, autor do clássico “Moby Dick”, é menos conhecido por uma outra obra igualmente magistral: “Bartleby, o escriturário”. É a história de um contador que um dia resolve parar de atender a qualquer tipo de solicitação. Diante de todo pedido, do patrão ou dos colegas, responde laconicamente: “prefiro não fazer”. Ele recusa-se inclusive a deixar o escritório, onde passa a morar, sem amigos, família ou vínculos. Ele vive seus dias escondido atrás de um biombo, olhando para o nada e insistindo no mantra “prefiro não fazer”. Bartleby é o protótipo do ser cuja solidão transformou a vida num vazio sem sentido. 

Diferentemente do personagem de Melville, que “preferiu" viver num estado de isolamento voluntário, nos dias de hoje, um número cada vez maior de pessoas sente o peso de uma solidão que não necessariamente escolheu. Estima-se que a solidão atinja um em cada três adultos no mundo, afetando a saúde psíquica, o sistema imunológico, aumentando a propensão a doenças cardíacas e à depressão. 

Macaque in the trees
(Foto: Grae Dickason/Pixabay)

A solidão na sociedade contemporânea tende a ser mascarada pela ideia de que estamos permanentemente conectados. Confundimos conexão tecnológica com conexão afetiva: elas às vezes coincidem, frequentemente não. A solidão não diz respeito ao número de pessoas que você conhece ou interage, mas sim à qualidade dessa interação. Os mais recentes estudos sugerem que não há apenas “uma”, mas três tipos de solidão: a solidão da intimidade, a solidão relacional e a solidão coletiva. Cada uma delas nos afeta de modo diferente e combinadas contribuem para um sentimento de desesperança. 

A solidão na intimidade tem a ver com a ausência de uma relação significativa com um parceiro íntimo. São as relações conjugais de toda ordem. As relações de intimidade são a nossa principal fonte de vínculo afetivo e suporte emocional. Elas são profundamente influenciadas pela qualidade dos vínculos que nossos primeiros cuidadores estabelecem conosco na infância. As pesquisas do psicanalista inglês John Bowlby enfatizaram que são esses primeiros vínculos, sobretudo os que estabelecemos com a figura materna, que vão emoldurar a forma como encaramos o outro: como uma ameaça a nossa integridade física e emocional; como uma presença inconstante, geradora de ansiedade; como uma presença segura com a qual podemos contar ou ainda como uma presença distante emocionalmente, com a qual é melhor não gerar expectativas para evitar frustrações. Bowlby denominou essas quatro formas de lidar com o outro de "estilos de apego”. Os estilos de apego ajudam a explicar uma parte do processo de isolamento social que uma pessoa pode experimentar ao longo da vida.

O segundo tipo de solidão é a relacional, que refere-se às amizades e aos grupos familiares. Mais uma vez, aqui não se trata da quantidade, mas da qualidade desses vínculos. Você pode ter poucos amigos e uma família nuclear, mas a força dessas relações pode ser forte o bastante para promover senso de pertencimento e segurança. Já a solidão coletiva enfraquece nosso senso de identidade social. 

A dimensão coletiva é ativada pela nossa rede de contatos: escola, trabalho, afiliação religiosa ou nacional. Uma criança quando se muda de escola pode sentir-se terrivelmente solitária; a aposentadoria significa muitas vezes a ruptura com vínculos significativos; a mudança de estado ou de país rompe vínculos de pertencimento. 

Por que nossa sociedade produz cada vez mais solitários em série? 

Uma recente pesquisa conduzida pelo instituto IPSOS apontou cinco grandes motivos, são eles: 1) a erosão da confiança nos outros e nas instituições; 2) o aumento do isolamento (menos amigos, declínio da socialização presencial, especialmente entre adolescentes); 3) a ampliação da desigualdade econômica, dificultando a construção de projetos de futuro compartilhados; 4) o aumento da polarização política (que contribui para a formação de bolhas e para a desconfiança em relação ao diferente); 5) as migrações em massa ocasionadas tanto pelas várias crises de refugiados, como pela rápida urbanização nos países mais pobres, que gera um grande contingente de pessoas com laços de pertencimento rompidos. 

Para além dessas grandes questões macro, do ponto de vista subjetivo, o fator mais importante, parece mesmo ter a ver com qualidade dos laços afetivos que construímos ao nosso redor. É cada vez mais comum partilharmos o mesmo cômodo, mas não o mesmo momento. Estamos conectados, mas não em conexão: confundimos com individualismo com individuação. Individuação em nenhuma hipótese significa isolamento social, ao contrário. 

A psicologia analítica de Carl Jung sempre insistiu nesta distinção. Individuação é o processo de nos tornarmos conscientes de nossas potencialidades, de nossos aspectos sombrios e das concessões que fazemos para sermos aceitos socialmente. A individuação é o processo que nos conduz à máxima fidelidade a nós mesmos, sem no entanto, abrir mão do convívio significativo com o outro. 

Quanto mais amadurecemos como indivíduos mais tendemos a apreciar a companhia do outro, sem desejar transformá-lo, nem nos subjugar ao seu desejo. É esse equilíbrio instável que produz relações mais significativas, porque mais autênticas. 

Em nosso processo de individuação, às vezes somos surpreendidos ao descobrir que nossa verdadeira família é onde encontramos afeto e não necessariamente na qual partilhamos laços consanguíneos; que nossas amizades não são as que romanticamente fantasiamos, mas as que nos reconhecem como somos ou tivemos a coragem de nos tornar; que nossa carreira não é a idealizada por pais, professores ou amigos, mas a que nos ofereceu recompensas que ultrapassaram a remuneração financeira; sem desconsiderar esse aspecto, como parte, mas não como finalidade última da vida. Nossos vínculos mais significativos emergem e se fortalecem quando nos permitirmos surgir como pessoa total e a respeitar o outro em toda a sua singularidade. 

Há tipo especial de solidão muito dolorosa: é a solidão que experimentamos ao conviver diariamente com a pessoa que não pudemos ou não tivemos coragem de ser. 

Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta.