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O outro lado da crise

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Durante a crise do novo coronavírus, o Covid-19, a coluna vai seguir o mesmo princípio de fazer observações pontuais sobre a economia. Mas, como a economia está virtualmente semiparalisada em todo o mundo, pelo isolamento forçado das pessoas em casa ou pelo efeito reverso do consumo (que atingiu a própria China, origem do vírus em dezembro de 2019), vamos adotar o título temporário de O Outro Lado da Crise. Que ela dure pouco.

Crise e oportunidades

Os próprios chineses, que são o maior país do mundo, com 1,4 bilhão de habitantes, 50 milhões à frente da Índia, ambos com civilização organizada há mais de 5 mil anos, têm um diagrama em que a crise é sinônimo de oportunidades.

No momento, como ganharam dois meses de combate ao vírus confinado na populosa província de Hubei, onde fica Wuhan, epicentro que matou 3.300 pessoas e ameaçou a vida de 68 milhões de chineses (SP e MG juntos), os esforços atuais são para evitar a propagação do vírus importado.

As atividades econômicas e sociais não voltaram ao normal porque o país sofre de problema semelhante ao que acometeu os Estados Unidos após a 2ª Guerra – a falta de parceiros no mundo ocidental capitalista, após a virtual destruição das locomotivas europeias e do Japão – e levaram à concepção do Plano Marshall, para reconstruir e modernizar a indústria europeia.

Na divisão de tarefas na globalização, processo iniciado após a visita do presidente republicano Richard Nixon à China, em 1972, e consolidado após a queda do muro de Berlim, em 1989, a China concentrou a produção manufatureira (60% do aço produzido no mundo sai de lá). Os supridores de matérias primas e commodities agrícolas, energéticas, minerais e metálicas estão nos EUA, Brasil, Argentina, Austrália, Europa, Oriente Médio e África.

Mas, no momento, as chamadas cadeias produtivas internacionais estão interrompidas. Aparentemente ilesa da onda do vírus (afirmação perigosa já que a quase vizinha Índia pôs 1,3 bilhão em isolamento e o Covid-19 se espalha pelo Sudeste asiático, o país não tem parceiros (os estoques são imensos nos países importadores de componente e produtos finais ‘made in China’.

E os países que decidiram se concentrar na liderança das atividades de serviços (financeiros, comércio, estética, lazer, turismo, telecomunicações, TI, entre outras) estão paralisados.

Neste sentido, a batalha pelo 5G - os chineses com a Huawei levando vantagem na semi paralisação dos concorrentes – deve ser o campo de batalha quando o mundo e a economia se recuperrem dos escombros do Covid-19.

Wishfull Thinking

No mundo econômico, há uma aflição geral para a rápida retomada das atividades. Mas, nos Estados Unidos, ainda a maior economia do mundo, com 330 milhões de habitantes e PIB de US$ 21 trilhões, o presidente Donald Trump, que esperava voltar à normalidade “antes da Páscoa”, reviu seus conceitos diante das projeções de que até 200 mil americanos poderiam morrer da Covid-19.

A título se comparação, na 2ª Guerra Mundial, em quatro anos morreram pouco mais de 400 mil soldados americanos. No Vietnam, foram mortes pouco menos de 60 mil soldados. Na invasão do Iraque pouco mais de 4 mil soldados perderam a vida e a intervenção no Afeganistão custou a vida de 2.200 soldados. Todos em sua maioria jovens.

Quando disse que iria suspendeu o isolamento ‘antes da Páscoa”, Trump manifestou o que se chama de ‘wishful thinking’, expressão inglesa que é a formulação de um desejo. Diante das projeções, Trump curvou-se no domingo 29 de março à realidade e anunciou a manutenção da política de isolamento até 30 de abril. A Argentina repetiu a prorrogação do isolamento.

O que o Brasil é diferente dos EUA

Donald Trump andou tentando tirar uma casquinha semana passada da General Motors, ao anunciar que estava pressionando a gigante automobilística americana a acelerar a produção de respiradores e ventiladores mecânicos para atender as vítimas do Covid-19. O “New York Times” desta segunda-feira, 30 de março, traz extensa reportagem mostrando que Trump quis surfar na onda, pois a GM estava trabalhando no projeto desde fevereiro.

Isso lembra uma frase de um antigo presidente da GM em 1946. Charles Wilson, cujo antecessor andou às turras com Franklin Roosevelt, disse em alto e bom som: “O que é bom para nosso país é bom para a General Motors e vice-versa”.

A frase foi readaptada em junho de 1964 pelo político baiano Juracy Magalhães, quando foi indicado para chefiar a embaixada brasileira em Washington, sonho interrompido para o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Indagado como recebia a indicação, Juracy respondeu sem filtros: “O Brasil foi aliado dos Estados Unidos em duas guerras e nunca se arrependeu (...). Por isso digo “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil e vice-versa”. Se deu mal, foi massacrado como entreguista para sempre.

Eduardo Bolsonaro, enquanto pleiteava o cargo (o pai desistiu da indicação quando percebeu que o seu nome não seria aprovado pelos 81 senadores), passou a defender a posição americana contra a entrada da Huawei como fornecedora de equipamentos na concorrência da banda 5G (a ser disputada pelas operadoras de telefonia).

O Brasil, segundo o presidente Jair Bolsonaro “é diferente dos Estados Unidos”, onde pobre não mergulha no esgoto. Mas a diferença gritante não é apenas nas questões sociais e de saúde (48% da população não tem redes de esgoto, que recebe tratamento em menos de 70% dos casos).

Boa parte do sustento dos brasileiros provém da atividade informal. Mesmo nas estatísticas de emprego do IBGE, que não consegue abarcar os milhões que “se viram nos trinta”, os que trabalham por conta própria superam por larga margem os com carteira assinada. Até no setor público há cerca de 2 milhões sem carteira assinada.

Como encontrar os pobres e desvalidos?

Com a volta a Brasília do ministro da Economia, Paulo Guedes, após isolamento de 8 dias em seu apartamento no Leblon, a equipe econômica está dando tratos à bola para implementar efetivamente as medidas já tomadas e pensar em cenários para a continuação do isolamento (opção do cidadão Paulo Roberto Nunes Guedes, que completou 70 anos em 24 de agosto de 2019) ou para a flexibilização gradual da medida, como defende o presidente da República, em manifestações e atos tão irresponsáveis que foram censuradas e retiradas do ar pelo Twitter.

O governo já anunciou uma série de medidas para amparar pequenos e microempresários para garantir dois meses de salários de seus trabalhadores, com a grana lançada direto na conta do trabalhador. Com o banco de dados do FGTS da Caixa é possível,

Mas, como ficam os sem banco e os milhões de vendedores de churrasquinho, quentinhas manicures e milhares de serventes e auxiliares que operam sem carteira assinada? A Câmara aprovou ajuda de R$ 600 mensais (R$ 1.200 por casal) e ainda falta a aprovação, esperada para hoje, do Senado.

Segredo é cruzar bancos de dados

Quem, como eu, andou preenchendo o isolamento com leituras, pesquisas e séries na TV ficou impressionado como os serviços de inteligência de Israel (o Mossad e o Shin Bet, espécie de Polícia Federal/FBI) identificam em segundos um suspeito. Na série “False Flag”, percebe-se que difusão de câmeras de vigilância em todo o país facilita em muito a identificação de suspeitos. Mas não é só. Com um nome ou uma imagem, logo se chega ao celular da pessoa e a todas as suas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter), incluindo o seu círculo de amigos. Não precisamos chegar lá.

Mas encontrar onde estão os pobres e vulneráveis não é tão difícil, como lembrou um amigo. Dá para mapear a quase totalidade. Isto não é ação isolada do governo federal, mas requer cooperação de estados e sobretudo dos municípios e também da Justiça Eleitoral.

Basta o governo juntar e cruzar os bancos de dados da Justiça Eleitoral (nas eleições de 2018 havia 147 milhões de títulos), com os nomes das contas de celulares e ainda cotejar os censos do IBGE e outros cadastros estaduais e municipais, incluindo o Bolsa Família e os programas de Farmácias Populares.

Como os computadores estão ociosos no Serpro e IBGE, dá para rodar programas e localizar onde mora “todo mundo”. Seguramente, as grandes empresas de informática também dariam apoio.

Feito o cadastro, o público alvo seria convocado a comparecer nos pontos onde todos votam (está tudo fechado). Para evitar aglomerações, a convocação seria feita por ordem alfabética e em blocos diários, com tempo para uma entrevista de triagem daqueles que devem receber efetivamente a ajuda.

Dinheiro para isso?

Ora, é só mexer em rubricas do Orçamento que foram para escanteio. Paulo Guedes quer aproveitar que as aulas estão suspensas por tempo indeterminado e deslocar recursos do Fundeb (usados para merenda escolar – esta pode ser direcionada à casa dos alunos pelas prefeituras – transporte e compra de ônibus).

A pandemia do coronavírus veio demonstrar o erro do engessamento do Orçamento em todos os níveis de governo. A obrigação de empregar as verbas na educação leva os municípios a comprarem ônibus escolares no fim do ano para não morrerem com verba ociosa. É uma festa para fabricantes e revendedores. Mas é essa a necessidade real? A rediscussão do pacto federativo deve começar por casos como esse. Mas para isso é preciso diálogo franco e produtivo em favor da sociedade brasileira mais desvalida.

Como dizia, dinheiro não é problema: podem usar a verba do fundo eleitoral (adiar a eleição para dezembro seria uma boa ideia) e também do Censo de 2020, adiado para 2021 (bem como de outras pesquisas do IBGE, como a PNAD.

Com a reativação da estrutura programada para a eleição mais a ajuda do efetivo das forças armadas e outras atividades, em um mês dá para mapear a rede de proteção para chegar aos necessitados.

Pensando além

Todos temem o impacto devastador da Covid-19 nas comunidades mais carentes do país. Lá falta tudo, a começar por sistemas de água e esgoto e ventilação. Famílias se amontoam em cubículos apertados. A Rocinha, uma das maiores comunidades do Rio de Janeiro é um antigo berço de tuberculose.

A falta de programas de assentamentos regulares (o governo Cabral chegou a cogitar desapropriar grande área da Rocinha para abrir ruas de circulação e edificar prédios altos e arejados, com água e esgoto tratado para reassentar milhares de famílias, mas desistiu na largada. Maluf fez isso em São Paulo em área da capital paulista com o Projeto Cingapura. Superfaturado, claro.

Se a questão é aproveitar a oportunidade para retomar a economia com empregos, por que não repetir o New Deal de Roosevent adaptado ao Brasil?

Em vez das grandes obras públicas que combinaram barragens e hidrelétricas que tornaram navegáveis e fontes de energia os problemáticos rios Mississippi e Missouri que cortavam boa parte dos Estados Unidos, além de estradas, portos e ferrovias (os EUA ainda uma nação predominantemente rural nos anos 30), nossos desafios estão nas periferias das grandes cidades, onde mais se mais manifestam os danos da desigualdade social brasileira.

Por que as prefeituras não convocam desempregados e pequenas empresas para aplicar revestimento ou calçamento em todas as ruas, vielas e escadas das favelas, além de redes de água e esgoto onde elas não existem? Este projeto e obras sairiam das emergências e do trabalho de quem não está infectado.

Empregaria muita gente da comunidade local, gerando renda nas comunidades (que teria aumento da qualidade de vida) e geraria encomendas à indústria de material de construção.

O valor dos projetos de longo prazo

No Japão, quando um tsunami causou o desastre na usina nuclear de Fukushima, em 2011, em poucos meses a devastação da infraestrutura foi refeita, com a contratação maciça de obras. Em boa parte, isso foi possível porque as consultorias locais de engenharia trabalham com projetos de médio e longo prazos.

No Brasil, em 2007, o Comitê da Bacia do Rio Guandu, do qual a Cedae tira a água que abastece bom parte do Grande Rio, contratou estudo de empresas de consultoria. A conclusão: sem estações de tratamento de esgoto nos municípios que estão acima da estação do Guandu (Queimados, Seropédica, Japeri, Miguel Pereira e parte de Nova Iguaçu), a qualidade da água estaria comprometida. Portanto, a crise da geosmina estava prevista. Aconteceu por absoluta inação da Cedae e do governo do estado do Rio de Janeiro que pensa em privatizá-la há uns quatro anos.

Isto são só reflexões! Na prática só discurso e politicagem sem objetivo.

O momento é para o governo mapear obras micros e macros indispensáveis que podem sair do papel para gerar emprego renda e melhorar a qualidade de vida do brasileiro depois que a crise passar.