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Entrevista Dr. Heider Pinto Médico Sanitarista

Nossos médicos são muito menos preparados para a atenção básica do que os médicos generalistas cubanos

Foto: Araquém Alcântara -
Para tentar garantir a permanência do profissional em pequenos municípios, o governo pagará um incentivo de fixação que pode chegar a R$ 120 mil para o médico que ficar por quatro anos em áreas vulneráveis
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Médicos ouvidos sobre a partida dos cubanos do Programa Mais Médicos são enfáticos: “Isso será uma catástrofe”. É a opinião do médico de Família e Comunidade Thiago Henrique Silva, Mestre em Saúde Pública pela USP. São muitas as acusações infundadas que motivaram o retorno dos médicos cubanos ao seu país. A mais repetida é de que Cuba pratica a “escravidão” ao receber um percentual sobre o total pago aos seus médicos no Brasil. Em qualquer outra área, como a de um consultor financeiro, quando ele é contratado através de empresas internacionais, ele chega aqui recebendo um percentual do que as contratantes pagam às empresas contratadas. E não recebe moradia, auxílio à família, bônus, como acontece com os médicos cubanos, conforme relata, nesta entrevista, o dr. Hêider Pinto, médico sanitarista.

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ENTREVISTA Dr. Heider Pinto Médico Sanitarista (Foto: Fotos gentilmente cedidas por Araquém Alcântara)

Dr. Hêider é especialista em Saúde Pública, ex-gestor do SUS, ex-Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde - SEGTES, do Ministério da Saúde. Ele participou da formulação e liderou a implantação do Programa Mais Médicos, levando assistência médica a 63 milhões de brasileiros, que antes não contavam com qualquer atenção de saúde básica.

COLUNISTA - Os médicos cubanos farão muita falta?

Hêider Pinto - Sim. Em muitos desses municípios, pela primeira vez, tinha um médico na cidade para atender o povo. Eles tinham a segurança de um médico, de segunda a sexta, no Posto de Saúde, o Mais Médicos. Eles iam ao Posto de Saúde, o médico cubano que os atendia, olhava no olho, tratava com dignidade e conversava, ouvia com atenção a história da pessoa, da vida dela, e dava um tratamento que resolvia o seu problema de saúde. Um tipo de atendimento que, antes disso, as pessoas não conheciam. Estavam acostumadas a médicos brasileiros com a atitude distante, que não conversavam, não falavam olhando no olho, e as pessoas ficavam encabuladas até de conversar e de falar de seu problema de saúde. Agora, além de deixarem de ter um médico para seu atendimento, de segunda a sexta, no posto de saúde, elas vão perder aquela segurança, aquela confiança, que elas não têm condição de ter com outro tipo de atendimento.

Como ficará a situação nos locais atendidos pelos médicos cubanos?

São 8.500 lugares, na metade deles ou em um pouco mais os médicos brasileiros não querem ir, não têm interesse em atuar. Vamos voltar à condição de 2013, quando os cidadãos precisavam mendigar na prefeitura para poder ter transporte para ir à cidade maior e serem atendidos. Vai haver piora de atendimento de saúde, com as pessoas agora ainda mais empobrecidas e sem o atendimento gratuito do Mais Médicos.

Por que os médicos brasileiros resistem tanto em participar do Mais Médicos?

No Brasil, o modelo hegemônico que os médicos seguem é o baseado em ser médico especialista, como é nos Estados Unidos. Diferentemente do modelo que há na Espanha, em Portugal, no Canadá, no Reino Unido, na Austrália, do médico generalista, que resolve 80% dos problemas que a pessoa pode ter e a encaminha, só então e se for o caso, para um especialista. No Brasil, o modelo é invertido. O médico brasileiro, ao se formar, pensa no modelo estadunidense, em ser especialista e ir trabalhar no mercado, atender numa clínica, trabalhar para um plano de saúde. Esse médico brasileiro, mesmo com vários estímulos, não quer o modelo da medicina generalista, porque a considera uma medicina menor. Para ele, cuidar das pessoas no dia a dia do Posto de Saúde, dar atenção básica, tratar dos problemas cotidianos, que costumam ser diabetes, doenças cardíacas, depressão etc., é ficar na mesmice. Não é o futuro profissional que ele ambiciona ser. Tem também o choque cultural. A maioria é de classe média e classe média alta, ela vai aos shoppings, aos restaurantes, faz viagens. Tem um padrão cultural que não se adequa aos municípios do interior.

No programa Mais Médicos, os brasileiros são alocados em municípios a 200km, 250 km da cidade onde nasceram. Por isso houve tantos postos de trabalho em lugares mais distantes dos grandes centros a serem atendidos, em que os brasileiros não quiseram ir, os brasileiros formados no exterior também não quiseram e os médicos estrangeiros não quiseram. Só os cubanos. Agora, não haverá possibilidade de isso ocorrer com médicos brasileiros. Nossos médicos são muito menos preparados para a atenção básica do que os médicos generalistas cubanos. Já saem das universidades como dermatologistas, anestesistas, e terão de ir para onde não querem, pra fazer o que não gostam, pra atender como não sabem.

Que mudanças houve no programa Mais Médicos de Dilma para Temer?

No tempo de Dilma eram 11.500 postos de saúde que diminuíram para 8.500 postos no tempo de Temer, de acordo com os dados que temos hoje do Mais Médicos, através do Ministério da Saúde fornece. No governo Dilma, esses números eram transparentes. Com o governo Temer as informações foram retiradas do ar. Para os médicos brasileiros atribuía-se um percentual de 10% de bonificação quando fizessem prova para serem especialistas. Se tirassem 7, a nota era 7,7. Além de auxílio moradia. E o médico saía depois de dois anos com especialização, acompanhado por supervisores das universidades, recebendo o tele saúde no telefone, em casos em que os médicos tivessem dúvidas. Temer acabou com isso.

Ainda houve, no Programa Mais Médicos, o estímulo à criação de escolas de medicina, com a formação de seis mil médicos no país. Hoje, eles são 2.1% a cada mil, mas a previsão era de se ter hoje 2.8% por mil. Antes do início do Mais Médicos, eram 1.8%. Tudo isso foi interrompido por Temer, que cedeu à pressão corporativa do movimento médico desejoso de manter a reserva de mercado.

Qual o percentual de médicos em Cuba e no Brasil?

Cuba tem aproximadamente nove médicos por mil habitantes. A população do país é de aproximadamente 12 milhões de habitantes. Eles têm cerca de 108 mil médicos. A título de comparação, o Brasil tem 400 mil médicos com a população de 210 milhões de habitantes. Isto é: Cuba tem 8.7% a cada mil e o Brasil 2.1%. Com o agravante que contará com menos oito mil médicos com a saída dos cubanos.

O programa de governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro, propõe o Serviço Militar Médico, com convocação compulsória. Isso é possível?

Sim, é possível ser implementado o Serviço Militar Médico compulsório, como está no programa de Bolsonaro. Mas sua implantação é problemática e muito mais cara. Essa possibilidade chegou a ser estudada pelo governo Dilma. Porém, para criar esse tamanho de serviço militar, tem uma quantidade de outros cargos militares que precisam também ser criados, militares para fazer a gestão etc. Terá que se expandir a estrutura militar, aumentar parte de seu corpo. É uma solução cara. A conta que foi feita na época era altíssima, com o investimento maior que os resultados. A pergunta que se fez foi: deseja-se expandir as forças militares no Brasil? Mas agora, nesse governo, é outra visão.

Bolsonaro diz que a situação dos médicos cubanos é de escravidão...

Usa-se da desinformação para fazer uma narrativa errada. A remuneração dos cubanos segue o mesmo padrão de onde eles estão em missões em mais de 60 países, sob a análise da Organização Mundial de Saúde, com experiências que já deram certo, como a dos cubanos quando houve a crise do ebola. O médico concursado no serviço de saúde cubano se alista como voluntário quando há missão internacional, é selecionado, e sua remuneração salarial se mantém a mesma em Cuba, onde é paga à sua família. O médico ainda recebe um “plus”, porque está em missão internacional. Para ele ir, Cuba estabelece um valor mínimo a ser pago pelo país que o recebe, o que é o mesmo que os médicos brasileiros recebem quando vão fazer residência médica: 3.300 reais. Isto é, ele recebe o valor em reais, o bônus e o salário de Cuba. O prefeito da cidade, onde ele está atendendo, paga a moradia. É muita coisa que ele recebe. A alegação de trabalho escravo não se sustenta. Mesmo se fosse uma taxação do governo cubano. Em alguns países, como a Dinamarca, a taxação é de mais de 50% e ninguém fala que eles são escravos. Os Planos de Saúde pagam muito menos aos médicos pela consulta, pelos procedimentos. Menos da metade do que os planos recebem é o que chega para os médicos.

Nota

As comemorações, esta semana, do Dia da Consciência Negra, haverá na quarta-feira, na Sociedade Brasileira de Psicanálise do RJ, um debate com a psicóloga Deborah Medeiros e o militante do movimento negro Carlos Alberto Medeiros, tradutor de “A autobiografia de Martin Luther King”. Em pauta, o conceito de raça no Brasil e o impacto das hierarquias raciais. Aberto ao público, a partir das 21h.

***Com João Francisco Werneck