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Darcy, Glauber, e a herança da indignação

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Após 20 anos de atividades que a tornaram Patrimônio Cultural e Imaterial do Esta-do e referência internacional no ensino do audiovisual, a Escola de Cinema Darcy Ribeiro está sendo despejada do prédio de cinco andares que ocupa na Rua 1º de março, no centro histórico do Rio. A Ação é movida pelos Correios, dono do imóvel, que lá pre-tende instalar sua sede estadual, consumada a privatização. Vistos como subversivos e inimigos pelo governo, o cinema e os livros estão entre os alvos atuais da ofensiva bolsonarista contra a cultura.

Reações surgidas em diversos setores, inclusive um abaixo assinado com mais de dez mil assinaturas, conduziram a uma negociação, mas a sobrevivência da escola, e todo o seu acervo, não está garantida. O TRF da 2ª Região determinou a devolução do prédio. Situada no corredor cultural do centro, em frente ao CCBB, ao lado da Casa França Brasil e do próprio centro cultural dos Correios, a Escola oferece cursos de direção, ro-teiro, montagem, produção e cursos livres. Formadora de mão de obra qualificada para a indústria do cinema, por lá já passaram mais de 20 mil alunos.

A Escola de Cinema é uma das criações que o mineiro Darcy Ribeiro implantou no Rio. Na sua volta do exílio, fixou-se na cidade. Foi vice-governador de Brizola de 1983 a 1987, depois eleito senador. Deixou marcas de sua de sua presença irrequieta e criativa nos Cieps, um projeto revolucionário de educação em tempo integral para crianças; no Sambódromo; em casas de cultura e numa universidade modelo no Norte Fluminense, que também leva o seu nome. Com ênfase na pesquisa e pós-graduação, a UENF foi a primeira a conquistar autonomia administrativa e patrimonial no país.

Amante do cinema, Darcy via em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de seu amigo Glauber Rocha, um dos filmes essenciais para se conhecer a tragédia brasileira, em sua grandeza e em seu desespero. Foram dois homens muito próximos, que enxergavam adi-ante de seu tempo. Trabalhei com um, Darcy, e conheci o outro, em entrevistas. Foi dele, Darcy, o apaixonado discurso de despedida no funeral de Glauber, no cemitério de São Joao Batista, no dia 23 de agosto de 1981.

39 anos decorridos neste mês de agosto, o velório no Parque Lage e o enterro reuniram todo o cinema brasileiro. Em lágrimas. A cena impactante está no documentário de Silvio Tendler, “Glauber, Labirinto do Brasil”. Por interferência da mãe de Glauber, dona Lúcia, o filme ficou proibido durante anos. Ao final, Maria Lúcia Godoy canta a bachiana nº 5, de Villa Lobos e Darcy pergunta, emocionado: o que fica de Glauber? Com o rosto em transe, ele dá a resposta: a herança de sua indignação, um grito de espe-rança e desespero.

É este grito de indignação, em homenagem a Glauber e Darcy, que deve ressoar neste momento numa campanha pública para manter viva a Escola de Cinema. Irene Ferraz, diretora e fundadora, ex-mulher de Darcy, lembra que em decorrência da situação da pandemia de coronavírus, em que está em vigor um decreto de calamidade pública, a escola não pode ser despejada sem um lugar seguro para depositar seu acervo.

O prédio estava abandonado e em ruínas quando a Escola o assumiu. Foram realizados investimentos para restaurar e adequar o edifício a suas funções educacionais. Construídas ilhas de edição, estúdios, biblioteca, filmoteca, uma sala para exibição de filmes. A retomada dos cursos online, segundo Irene, está prevista para começar dia 24 de agosto.

Situação semelhante é enfrentada pela Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que o governo sufoca ao deixar de transferir recursos para sua manutenção. Lá se encontra depositada parte da obra de Glauber. Sua filha, Paloma Rocha, denuncia a destruição da história do cinema brasileiro por uma gestão negacionista, que comete crime de responsabilidade, “um verdadeiro genocídio cultural”.

Nada disto importa aos burocratas, que seguem as pegadas do ideário fascistóide deixadas pelo capitão e seus ministros. O cinema, o teatro, as artes, os livros e tudo mais que couber na palavra cultura, espaço democrático de criação e de debate, deve ser banido e despejado. Estamos passando por uma fase de transição da era da insensatez para a era da estupidez.

Em nome da preservação da memória da cultura brasileira, a Escola de Cinema e a Cinemateca precisam manter suas portas abertas. Antropólogo, educador, político, escritor, imortal, Darcy foi, antes de tudo um sedutor. Um sedutor indignado. Seus estudos estão mapeados no livro “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, onde deixa registrada uma síntese de nossas heranças: “Todos nós brasileiros somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados.”

*Jornalista e escritor