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Furtado e Florestan nos devolvem a sanidade e o futuro

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Como se fosse uma sombria maldição já assimilada, o país encaminha-se para alcançar nos próximos dias a fantástica marca de cem mil mortos pela Covid-19, mais do que a bomba atômica matou em Hiroshima. Com a mesma aparente indiferença de normalidade, assistimos Bolsonaro manter sua rotina de tergiversações e mentiras, andar de moto e exibir para as emas palacianas o frasco de seu elixir milagroso. Enquanto o público se distrai, seu governo acelera a meta de destruir instituições e políticas públicas nas áreas de saúde, educação e cultura, construídas com muita luta, dedicação e trabalho desde o fim da ditadura.

Nesta interminável viagem através de uma quarentena cada dia mais tensa a que estamos submetidos, só mesmo parando tudo para buscar energia e sanidade nas comemorações do centenário de dois cidadãos brasileiros exemplares. O economista Celso Furtado e o sociólogo Florestan Fernandes, dois pensadores magistrais, pioneiros no estudo das desigualdades, do racismo, e dos motivos do atraso da sociedade brasileira. Formuladores de um pensamento crítico voltado para dar sustentação às lutas sociais dos explorados, ao mesmo tempo em que projeta no futuro um país com democracia política e social.

Difícil chegar lá. Há sempre um golpe no meio do caminho. Vindos da universidade pública, ambos veem a educação como o caminho decisivo para alcançar o desenvolvimento. Dois mestres que ensinaram com paixão e sabiam transmitir conhecimento. Viveram suas vidas e exerceram seus papéis sociais com coragem, desafiando os poderosos. Na linguagem futebolística, dois meio-campistas, ambos canhotos, destes que levam a bola de uma intermediária à outra, distribuem o jogo, desarmam o adversário e preparam a finalização.

Curioso que estes dois homens, Celso e Florestan, um nordestino nascido no sertão paraibano e outro paulistano filho de uma lavadeira pobre e órfão de pai aos 7 anos, tenham nascido no mesmo mês e ano, julho de 1920, e em sua trajetória influenciado gerações de brasileiros. Deixaram uma obra sofisticada e variada que permanece atualíssima. Neste momento em que a pandemia escancara a crise e fracasso do neoliberalismo, suas ideias reforçam a importância da presença do Estado na economia. É fundamental para o nosso futuro que sejam apresentados aos jovens pelos professores, que seus livros sejam debatidos nas escolas e universidades.

Florestan e Celso deixaram um legado interdisciplinar, de natureza política, eco-nômica e cultural, fruto de embates, pesquisas e estudos transformados em livros e teses, sempre com um rumo e um sentido: a formação de uma consciência crítica sobre os privilégios, o racismo e as desigualdades na sociedade. Constituem referência em estudos sobre o país, traduzidos e discutidos em seminários e universidades no exterior. Aqui onde nasceram, neste governo de olavistas e rachadinhas, silêncio absoluto. Por preconceito ideológico ou ignorância nada se falou sobre o centenário e a atualidade dos dois mestres e cientistas.

Com essa trajetória subversiva, foram duramente atingidos pela violência da ditadura de 1964. Criador da Sudene no governo JK e ministro do Planejamento do de-posto presidente João Goulart, Celso Furtado teve seu nome incluído logo na primeira lista de cassados, o AI nº 1. Seu caminho foi o exílio. Na Universidade de Paris-Sorbonne fez doutorado em economia. No Chile, lecionou e participou da fundação da Cepal, com o argentino Raul Prebish. Furtado via a industrialização como o principal meio para superação do subdesenvolvimento, ao lado das reformas de base e do Estado.

Seu livro "Formação econômica do Brasil - edição comemorativa dos 50 nos", da Companhia das Letras, tem apresentação de Rosa Freire d´Aguiar, sua viúva, e reúne resenhas e artigos de economistas e historiadores. Na comemoração do centenário, Rosa fez a coletânea "Essencial Celso Furtado", na Penguin/Companhia, em que destaca quatro linhas de sua obra: o pensamento econômico, o político, o eixo cultura/ciência, e vá-rios papers sobre formação cultural e responsabilidade de cientistas e economistas. Disponível nas versões papel e e-book, é uma excelente iniciação para quem quer conhecer o pensamento de Celso Furtado.

Para o sociólogo e professor da USP José de Souza Martins, a obra sociológica de Florestan Fernandes cobre um extenso campo da realidade social brasileira e “constitui um dos mais densos retratos do Brasil, decisiva contribuição para formação de uma autoconsciência científica de nossa sociedade”. Pioneiro no estudo das desigualdades raciais, seu livro “A Integração do negro na sociedade de classes”, publicado em 1965, já antecipava o que agora está em pauta com o movimento Vidas negras importam: as desigualdades raciais não se resolvem automaticamente. Mudanças sociais e urbanização acelerada não fazem desaparecer os problemas mais agudos, ao contrário, eles se tornam mais explosivos e violentos.

Suas pesquisas e análises para estudar a consolidação da autocracia burguesa ao longo da formação histórica brasileira estão em outro clássico, “A revolução burguesa no Brasil”, de 1975, que acaba de ser lançado pela editora Concorrente. Florestan foi um ativo participante da vida social e política. Um dos fundadores do PT, eleito deputado pelo partido na Constituinte. Como Celso, seu companheiro de viagem nestes cem anos que não foram de solidão, também foi vítima da violência do Estado autoritário. Apo-sentado compulsoriamente de sua cátedra na USP em 1969, deixou o país e foi levar seus saberes para os alunos das universidades de Columbia e Yale, como professor visitante.

*Jornalista e escritor