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Um roteiro para a fantástica metamorfose de Serra

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Plano de abertura. Narração em off. Um procurador sentado em sua mesa de trabalho manuseia o seu notebook e ordena folhas de papel da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal de São Paulo contra o honorável senador José Serra, 78, acusado de lavagem de dinheiro no exterior. As propinas recebidas de uma empreiteira foram transferidas para sua conta. É muito dinheiro, milhões de reais depositados numa sofisticada rede de olffshores operados por sua filha Verônica. Fotografias do passaporte dela no processo são mostradas, ao lado de fotos do senador com o semblante abatido.

Corta para. Close no rosto do líder estudantil José Serra, 21, que discursa no comício da Central do Brasil, na noite de 13 de março de 1964, ao lado presidente João Goulart. Faixas e cartazes pelas reformas de base envolvem a multidão que lota a praça. Dias depois veio o golpe, Jango foi derrubado e o presidente da UNE entrou na embaixada da Bolívia de onde fugiu para o exílio. Na madrugada do golpe, fez uma proclamação pela rádio Nacional defendendo a resistência.

Uma inimaginável transformação ocorreu neste interregno de mais de meio século que separa as duas cenas. Embora muitas vezes invisível, há uma articulação entre o destino individual de um personagem e o desenrolar extraordinário da História. As filmagens desse longa metragem começam naquele momento em que o país é sacudido por um vendaval que arrasta as pessoas, mudando radicalmente o destino individual de muitas delas. A ditadura que se instalou por 21 anos foi um cruzado brutal que acertou a moleira dos jovens rebeldes, sepultando os sonhos embalados por uma geração que se via com a História nas mãos.

Milan Kundera, o escritor tcheco famoso por sua insustentável leveza, trata deste tema crucial da história cruzada com o destino das pessoas em seu primeiro livro escrito depois que saiu de Praga, como dissidente perseguido pelos comunistas do Partido. Em “O livro do riso e do esquecimento”, editora Nova Fronteira, Kundera lança um olhar irônico e amargo sobre o cotidiano da Tchecoslováquia após a invasão russa de 1968: as desilusões da juventude, a desorientação dos intelectuais, a prepotência dos lideres políticos, a corrupção, a tirania. Para não esquecer Praga e sua primavera, seus personagens escolhem o caminho da ironia e da fantasia.

Estudante de engenharia, Serra começou sua vida politica na esquerda católica, primeiro com a JUC e depois com a AP, da qual foi um dos fundadores. Eleito presidente da UEE de São Paulo em 62, no ano seguinte chegou à presidência da UNE, em aliança com o PCB, representado por Marcelo Cerqueira na vice. A UNE era uma entidade de projeção nacional. Suas ações, sejam no plano político, estudantil ou cultural, tinham impacto real e simbólico na vida do país, e seus presidentes asseguravam meio caminho para uma carreira política.

No turbulento período que antecedeu o golpe, os três últimos líderes que se sentaram na cadeira de presidente no segundo andar do prédio da praia do Flamengo, 132, foram o goiano Aldo Arantes, que seguiu carreira política no PCdoB; o mineiro Vinicius Caldeira Brant, que logo depois assumiu a via da luta armada contra a ditadura. Preso, denunciou as torturas no exterior e recomeçou a vida como professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Lecionou e escreveu livros até o fim. O paulista da Mooca José Serra, cujo mandado foi interrompido antes de terminar, fecha o círculo.

Ao recriar em sua prancheta o prédio da UNE na praia do Flamengo para a filmagem, o roteirista se espantou com a babel criativa que lá funcionou. Um turbilhão ligado direto 24 horas. E não rolava ácido. Maconha quem sabe talvez. Intermináveis reuniões de grupos sociais e categorias diversas num país com febre de mudanças. Uma das principais criações foi o Centro Popular de Cultura e a Une Volante, que saía pelos bairros e subúrbios para dar aulas e fazer encenações teatrais.

O pessoal da História Nova e do Cinema Novo entrava e saía. Os grupos fechavam-se em salas para suas reuniões. Nesse tumulto nasceu o filme Cinco Vezes Favela, precursor do cinema novo. Os episódios foram dirigidos por Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Dieguez, Joaquim Pedro e Leon Hirszman, com produção do CPC. A UNE transformara-se num barato que atraía os jovens. Numa noite você podia encontrar o líder camponês Francisco Julião falando sobre as ligas camponesas e o banqueiro José Luís de Magalhaes Lins, um liberal que financiava atividades de cultura. Ou sentar para assistir O Auto da Compadecida, de Suassuna.

Entrei no agitado mundo daquele prédio em 63. Estudava jornalismo na Fnfi e fui chamado para ser repórter do jornal Movimento, levado pelo Valter Faria, da Faculdade, que me recrutou para o Partido. Fiquei amigo de Humberto Kinjô, o japonês da AP, homem do Serra no jornal. Estreei numa tarde entrevistando no Hotel Plaza, em Copacabana, o sargento que liderou a revolta dos sargentos em Brasília. Clandestino, ele deu a entrevista com uma pistola 45 em cima da mesa.

Havia cursos de Literatura, com o poeta João Cabral, de Economia, com Celso Furtado, de alfabetização pelo método Paulo Freire. Lenin e Trotsky podiam surgir em alguns finais de tarde, nunca juntos. Houve quem notasse que aquela algaravia estava parecendo um soviete em plena ação revolucionária. Estudantes que vinham dos estados dormiam nos colchões de um vasto galpão nos fundos. O amor era livre. Ao final dos espetáculos, cantava-se em coro a canção do Subdesenvolvido, de Carlos Lyra e Chico de Assis. Na mesma noite do golpe tudo isso veio abaixo. O prédio foi incendiado por um grupo terrorista de direita. Enormes labaredas de fogo queriam destruir sua memória.

Corta para embaixada da Bolívia, no Rio. De lá, Serra segue para Paris, onde fica até 65. Mas em março tenta uma jogada arriscada e corajosa, retornando clandestino para uma tentativa de reorganização da AP. Ficou escondido em vários lugares, inclusive no apartamento da atriz Beatriz Segall. Diante da onda de repressão violenta, convence-se que a ditadura tinha vindo para ficar e retorna, desta vez para o Chile, onde permanece até o golpe de Pinochet. Levado para o Estádio Nacional com a família, já casado, saiu para embaixada da Itália e de lá chegou aos Estados Unidos.

Serra estudou na Universidade de Cornell e depois trabalhou no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. O roteirista para diante de um ponto de inflexão. Em suas marcações, neste momento termina a jornada do líder estudantil com consciência de esquerda que saiu do Brasil. Em seu retorno, 14 anos depois, surge outro personagem. Um politico pragmático, dissimulado, profissional, que se filia a um partido socialdemocrata. Que se torna governador, prefeito, renuncia, governador de novo, ministro, senador e candidato derrotado à presidência duas vezes. Esta, sua obsessiva ambição. Neste longo processo passa por uma metamorfose, que finalmente o transforma num impostor.

Mostrar essa passagem é uma das grandes dificuldades do roteiro. É um processo subjetivo. Ele abre uma foto publicada num jornal com o personagem deprimido. Conta que num encontro sigiloso com um dos delatores, ele pediu para ser poupado e chegou a chorar. Na sala de sessões, o procurador volta com os processos. Diz que não foi fácil a denúncia. As investigações prolongam-se há anos, bloqueadas por liminares e mudanças de Tribunal. Ajeita a gravata e sublinha um texto. Entre 2006 e 2014, José Serra e Veronica Serra ocultaram e dissimularam, por meio de numerosas operações ban-cárias, a localização e a propriedade de valores sabidamente provenientes de crimes.

Faz uma pausa, mexe no notebook e exibe para a câmera outro inquérito, em que o ministério público investiga uma operação de compra e venda de 4 obras de Portinari através de uma offsore controlada por Verônica, com a transferência de 320 mil euros. Uma operação de lavagem de dinheiro por meio de obras de arte. Neste momento, as imagens de Portinari se fundem com as do prédio da UNE em fogo e o rosto de Serra discursando no comício da Central.

Álvaro Caldas, jornalista e escritor