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Capitão Junta-cadáveres

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Os brasileiros estão morrendo às pencas. Há pilhas de cadáveres em cemitérios espalhados pelo país. Gente sufocada e impedida de respirar esvaindo-se em casa, outros morrendo sufocados em ambulâncias, os hospitais entupidos, equipes médicas e de enfermagem impotentes trabalhando sem dormir. A morte tornou-se uma rotina entre as famílias. Uma rotina sem velório, sem o ritual do luto, sem tempo para despedidas, para uma lágrima e o último afago no rosto da pessoa amada.

Olho pela janela e não vejo nada. Esparsas estrelas numa noite calma e silenciosa, ninguém transitando pela esquina em frente, nenhum carro parado no sinal. Vivemos confinados com a ilusão de que a cidade descansa em paz. A pandemia mata como se fosse uma guerra, mas paradoxalmente não soam as sirenes de alarme, não surgem no espaço aviões despejando bombas, nem caravelas desembarcam na Baía de Guanabara, onde aportou o corsário francês Nicolas Durand de Villegagnon, em 1565. Não trouxe a peste nem o iluminismo e foi expulso dez anos depois.

É uma guerra cruel e surda, estamos impedidos de ver suas batalhas sangrentas, de ouvir os gritos de dor dos feridos. De algo sabemos manejando freneticamente o celular, outras cenas vemos pela TV, sentados no sofá em casa. Há cadáveres em profusão, a cada dia o número de óbitos supera o anterior. Chegamos na casa dos vinte mil. São brasileiros de todas as idades, profissões, origem, classe social. Há doutores e lavadores de carro, professoras e diaristas, nutricionistas e cientistas, caixas de supermercado e entregadores de pizzas. E os reconhecidos, artistas e escritores, que têm rosto e nome.

Não há distinção de sexo ou de cor, são pessoas de cores e preferências variadas, cada uma com seu jeito, o seu sorriso, a sua verruga, sua tatuagem, o seu umbigo, com a sua obsessão, sua maneira de fazer sexo. Mas aqui também na morte a desigualdade persiste. A covid 19 escolhe os mais vulneráveis, atinge em cheio pobres e negros, os desempregados, essas pessoas que vivem nas periferias da miséria. Ainda que seus nomes não constem nas lápides, um dia terão direito a um Memorial, como acontece com as vitimas de tragédias e genocídios.

O Estado erguerá então provavelmente no Aterro do Flamengo, ao lado do Museu de Arte Moderna, um projeto arquitetônico de grande dimensão, assim como o governo argentino construiu o Parque da Memória, Monumento às 30 mil vítimas do terrorismo de estado nos anos 1976/87. Às margens do rio da Prata, onde corpos eram lançados de avião, os mortos e desaparecidos têm os seus nomes inscritos numa parede de concreto. Na entrada do Memorial no Parque do Flamengo haverá espaço para uma placa em bronze, com uma menção especial ao obscuro Capitão Junta-cadáveres.

Em meio à tragédia da pandemia revelou-se um personagem saído das trevas, um tipo abominável merecedor da alcunha de “Junta-cadáveres,” Ele é real, não se confunde com aquele retirado de uma obra de ficção. O tÍtulo cai bem ao capitão reformado do Exército no exercício da presidência, por seu desprezo à ciência e atos de sabotagem às medidas de distanciamento. Trabalha arduamente para ver crescer o número de mortes. Sua ação precisa ser contida com urgência. Há meios legais para seu enquadramento. Seis ex-ministros de Estado divulgaram manifesto pedindo seu afastamento da presidência por irresponsabilidade politica, moral e sanitária.

Na ficção, “Junta-cadáveres” é o personagem título do romance de Juan Carlos Onetti, (Civilização Brasileira, 1968, Planeta, 2009), escritor uruguaio considerado um dos mais importantes autores de língua espanhola no século passado. Em seu clássico romance, Onetti cria uma realidade delirante e sensual e uma vasta galeria de tipos para contar a história de Larsen, conhecido como Junta-cadáveres.

Sua profissão é reunir prostitutas velhas e em fim de carreira e ajudá-las a fazer seu trabalho. Um perfeito proxeneta. Talvez a grande personagem do livro seja a provinciana e imaginária cidade de Santa Maria, interior uruguaio, onde um dia desce na esta-ção ferroviária JC com um trio de prostitutas decadentes para fundar um bordel. Leva anos para obter autorização dos conselhos municipais. Quando as senhoras começam a trabalhar, a vila se agita em meio a uma impiedosa onda hipócrita e moralista.

Li “Junta-Cadáveres” quando fazia Jornalismo na extinta Faculdade Nacional de Filosofia, que formou tanta gente boa nas letras e artes que ainda se encontra em atividade. Indicação do professor de Literatura José Carlos Lisboa, um mestre cheio de sabedoria que nos apresentou os melhores autores hispano-americanos. Num momento, início da ditadura, em que estava com o viés subversivo em alta, por isso não li direito. Estou relendo com imenso prazer.

Nada disto, a Fnfi e o professor Lisboa, teria cabimento hoje, com o capitão Junta-cadáveres no governo associado à cloroquina e espalhando a covid 19. Com Weintraub na Educação e Regina Duarte na Cultura. Se o impeachment não for aberto por covardia do Maia, resta denúncia ao Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.

Jornalista e escritor