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Um belo domingo em Buchenwald

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A pandemia do coronavírus levou a uma radicalização do projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro de solapar as instituições até a derrubada do “sistema”, sua classificação para tudo que não está de acordo com suas ideias. Seus fanáticos adeptos, armados ou não, estão nas ruas todos os dias fantasiados para a guerra, buzinando e agi-tando a bandeira nacional. Defendem a volta da ditadura e buscam o confronto, enquanto ele exibe o seu falso e costumeiro procedimento de estimular a violência e defender a ruptura, para no dia seguinte voltar atrás, fingindo arrependimento.

O país vive uma situação de emergência sanitária que Bolsonaro esnoba de forma irresponsável e criminosa, estimulando em público acintosamente o contágio e a contaminação. Milhares de brasileiros estão sob ameaça de morte pela covid 19. Outros milhares vão sucumbir à devastadora recessão econômica que já se instalou com a imposição da quarentena, e vai se agravar ao seu término. Estudos preveem uma saída desordenada e caótica, com milhões de pessoas desempregadas e gravemente enfermas, com diferentes graus de depressão.

O projeto pervertido de Bolsonaro é um projeto de morte. Morte da democracia e das pessoas. Sua tática consiste em manter mobilizada sua base de apoio, que marchará a seu lado para onde ele apontar. Estão prontos para a ação, conforme mostram vídeos de grupos fardados exibidos nas redes sociais. Com repetidos atos na Avenida Paulista, Praia de Copacabana, em frente ao Congresso e o QG militar de Brasília e em outras capitais, desafiam a quarentena, provocam e agridem opositores criando um clima de ingovernabilidade. 

No desenrolar desta explosiva conjuntura podem num impasse decidir por uma mudança tática e partir para uma tentativa de golpe, contragolpe preventivo ou mesmo o autogolpe preconizado pelo vice, general Mourão. O nazismo começou com o putsch da cervejaria de Munique, em novembro de 1923, tentativa fracassada de um golpe de Hitler e seus seguidores do partido Nazista contra o governo da Baviera. E veio terminar num regime racista que desencadeou uma guerra mundial e criou uma rede de campos de concentração espalhados pela Europa.

A esta altura está bastante claro para analistas, cientistas sociais, psicólogos e jornalistas, políticos e economistas do bem, que o objetivo do negacionismo radical de Bolsonaro é uma ditadura. Ele não tem nenhum constrangimento em dizer que a verdadeira democracia é a ditadura. O AI-5 é a sua Constituição. No comando de um regime totalitário Bolsonaro poderá criar uma rede de campos de concentração para aprisionar ou confinar, como quiser, seus opositores, utilizando a ampla estrutura dos templos e igrejas evangélicas já existentes.

Com a vantagem de que ao contrário do que ocorreu em 1964, desta vez o método será outro. Ao invés de prender e torturar em delegacias e quarteis militares, com a indesejável criação de mortos que se tornam desaparecidos, os prisioneiros permanecerão confinados. Não se trata de uma distopia de fundo kafkiano, mas de um desdobramento da crise generalizada capaz de desestabilizar todas as certezas. Estamos no olho do furacão, e tudo indica que às vésperas de uma metamorfose do mundo, de passagem para uma sociedade de catástrofe, como a designou o sociólogo alemão Ulrich Bech.

Pensando num lugar assim em que se vive em estado de extrema opressão, fui à estante procurar um livro que relatasse experiências passadas nos campos de extermínio nazistas. Logo me deparei com “É isto um homem?”, pungente testemunho da tragédia do judeu italiano Primo Levi, deportado para Auschwitz em 1944. A seu lado um titulo logo me atraiu, “Um belo domingo”, de Jorge Semprun. (Editora Nova Fronteira, 1982)

Folheei e vi que nele havia marcado um trecho.

Eram cinco horas de uma manhã gelada e coberta de neve. Sentados no banco do refeitório do Bloco 40, estavam o francês Barizon, o espanhol Semprun, codinome Gérard, e outros prisioneiros, russos, poloneses, judeus, húngaros, alemães e tchecos. Começava o mês de dezembro de 1944 no campo de concentração de Buchenwald, em Ettersberg, na Alemanha. De repente Barizon ergueu a gola do casaco e disse: “Que belo domingo, rapazes!” Ele disse isso com uma expressão exagerada de riso, sem que nada explicasse sua repentina e desesperada exclamação.

Quarenta anos depois, Semprun, comunista, mais tarde expulso do Partido, escritor e roteirista escreveu este “Um belo Domingo”, uma viagem carregada de paixão por aquele inferno angustiante do campo de Buchenwald. Livro que ele transformou num libelo contra o totalitarismo e a favor da liberdade do homem, denunciando dois sistemas de vida igualmente opressivos, os campos de concentração nazistas e o stalinismo, com os campos do Gulag russo.

Talvez uma recordação da primavera tivesse ocorrido a Barizon naquela manhã em que a neve caía em rajadas. Talvez um presságio de esperança da vitória da vida sobre a bárbarie, que afinal viria em junho de 1945, às vésperas do final da Segunda Guerra, quando os prisioneiros foram libertados de Buchenwald, na floresta de Ettersberg.

*Jornalista e escritor