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De minha janela não vejo o fim do mundo

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Recluso, de minha janela não vejo o fim do mundo. Dizer que as ruas estão desertas é um clichê que dito de outra forma posso expressar assim: No horizonte até onde minha vista alcança vejo uma paisagem nua e desabitada, como se fosse uma pintura, que transmite um sentimento de angústia e de recolhimento forçado. Isto tem algo a ver com o fato de que estamos no outono e hoje é domingo, mas também decorre do medo de que há um vírus mortal, invisível e silencioso, solto no espaço. Não temos meios para abatê-lo.

Montado em seu aliado, o Estado mínimo, o Corona-19 devasta a humanidade ao mesmo tempo em que semeia os germes uma transformação de amplitude mundial. A última grande mudança que abalou o planeta foi a estrepitosa queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, acontecimento que marcou o fim do bloco soviético-comunista. Um momento crucial na História moderna, que chegou a ser denominado de “o fim do mundo” por um vidente, dito filósofo, nipo-americano.

Historiadores, economistas e cientistas sociais avaliam que ao emergir das cinzas, sepultados os mortos, o mundo não será mais o mesmo. Estará diante de um cenário de terra arrasada, a economia destruída, fábricas fechadas, desemprego em massa. Trinta anos depois da queda do muro que dividia as duas Berlins, cidades situadas no epicentro da Guerra Fria, começa a ser desfeita uma outra barreira que se impôs com o término do socialismo real. A da sociedade neoliberal dividida em classes, regida pelo lema do Estado mínimo e consolidada na primazia do mercado sobre os homens.

De minha janela, confinado, vejo uma paisagem urbana povoada de árvores e sombras. Uma paisagem posta em quarentena, onde quase nada se move. De vez em quando passa um cachorro ou surge uma moto veloz montada por um trabalhador jovem que entrega refeições e remédios para as pessoas sitiadas. Vestidos com uma jaqueta vermelha, os motoboys tornaram-se os principais personagens deste drama.

O único ator coadjuvante em cena é a solitária figura de um guardador de carros acenando para o vazio. Corpulento, com um pedaço de flanela balançando no punho e um boné descorado na cabeça, ele está ali todos os dias. Ganha a vida nas calçadas. Por mais que eu deseje não vai passar aqui em frente, nesta falsa esquina onde a Santa Clara recebe a Cinco de Julho, a famosa Garota de Ipanema, porque estou em Copacabana. Além do quê, Tom e Vinicius já se foram e o século mudou.

A crise atual é maior do que a de 1929, afirmou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. Para ele, o capitalismo que conhecemos a partir da Segunda Guerra Mundial não seguirá mais sendo o mesmo. E o PIB brasileiro pode cair até 10% este ano. Para outro economista, Paulo Nogueira Batista Jr., ex-diretor do FMI, o vírus pode alterar profundamente o próprio modelo capitalista atual, mexendo com o até então predominante neoliberalismo global. Pela primeira vez, há uma oportunidade de mudança de paradigma.

Não será o fim da História, como antes apressadamente vaticinou Francis Fukuyama, porque simplesmente a História não tem fim. Vai até onde forem a mulher e o homem, Adão e Eva. Mas diante da destruição e do medo profundo que hoje nos causa o amanhã, vislumbramos que a lógica neoliberal terá que mudar, analisa o sociólogo italiano Domenico De Masi, isolado em seu apartamento em Roma, em um dos países mais atingidos pelo coronavírus. Para ele, o afeto humano continua sendo nossa única salvação.

De minha janela, clandestino, posso ver e imaginar filmes. Integrante de grupo de risco, circulo e lavo as mãos e o rosto com álcool em gel antes da próxima aventura. Interessado em rever outro acontecimento épico, a Queda da Bastilha, procurei por um dos últimos filmes do cineasta polonês Andrzej Wajda, que acompanhou com seus longas o fim do comunismo na Polônia do pós-guerra. Em “Danton, o processo da revolução”, de 1982, ele mergulha na fase de terror da revolução francesa.

Dois líderes, Georges Danton e Maxmilien de Robespierre, “o incorruptível”, usam de todas as armas na disputa para liderar o processo. Preso e condenado pelo Tribunal Revolucionário, Danton morre na guilhotina, em 1794. Quando me viro para o interior da sala, ainda com a imagem da guilhotina na cabeça, dou de cara com Malcolm X, o radical e insubmisso líder afro-americano. Ele tira o chapéu e curva a cabeça para me cumprimentar. Parece mais alto do que eu imaginava. Veste terno escuro e o chapéu de aba curta, seu traje de orador nas igrejas e comícios de rua.

Foi um dos principais lideres da Nação do Islã. Assassinado a tiros numa de suas palestras no interior de um teatro. Vi-o na Netflix, na série “Quem matou Malcolm X?”. Pergunto-lhe se sete décadas depois ele sabe quem foi. Ele diz ter certeza de que sua morte foi tramada pelo FBI, que o manteve sob vigilância durante anos. Que contestou Kennedy, um líder inteligente e astuto. A verdade é que os brancos nunca nos deram chances. Sobre o Brasil, disse que o país elegeu um lunático. Com este fanático que está aí, vocês ainda terão muito confusão e barulho. Preparem-se.

*Jornalista e escritor